Não sei como alguém pode sofrer tanto quanto você... Disse Sigmund. Na verdade acho que sei sim, continuou... E de repente da cozinha lá de casa me vi em cima de um monte, cujo cume era muito íngreme, de rocha vulcânica adormecida por milhões de anos. Era o cume de uma montanha que ia subindo, e subindo até onde a vista já não podia aguentar, e o topo desta montanha possuía a largura de um poste de luz da cidade. Iluminado por um sol escaldante, e uma lua estonteante, eu me encontrava lá em cima. Os dois pés juntos sem espaço para abri-los. Abrir-me! Quedava-me estático, sem poder me mexer, sob o risco de cair no fosso da vida. E então Sigmund disse-me:
- Você ainda está em coma, meu amigo. Mas não se preocupe, é porque você deseja estar. Infelizmente não posso te dar a mão. Não posso te ajudar a sair do seu pico de altura e espaço micros. Mas será um ótimo momento para discutirmos o Tempo e o Sonho e suas relações.
Encontrava-me eu, completamente atônito àquela situação, e não acreditando em mim mesmo, tive que equilibrar-me para não cair em meu próprio vácuo. Sigmundo então chegou os olhos bem perto dos meus, e pude até sentir o talco de sua barba rescindindo.
- Está é a sua maldição, meu jovem amigo. Poder se mexer quando não deve se mexer. De certa forma essa é a história do Tempo e do Sonho. Uma vez estático, no cume da fina rocha, presencia-se o Tempo. Porém, a impossibilidade de se mover em nada tem a ver com o Tempo, propriamente dito. Ela é feita do Sonho. É o que você apenas pode atingir dentro de seu subconsciente. Seu consciente é cair, e isso é inevitável. Pois que o Tempo é sempre inevitável; o Sonho nunca.
Quis perguntar "porquê", mas Sigmund jogou suas palavras na minha frente, e disse:
- Einstein errou! A Ciência errou! HAHAHAHAHAHAHAH!!!!! E desatou num riso misto de choro e alegria. Algo de louco, porém nada profano. Algo de genial e profético.
- O Tempo não existe, meu velho camarada! O Tempo é apenas o movimento das coisas. Não é uma dimensão. Quando você nasceu sua vida era uma planície baixa e inerte. Os rios de sua existência trataram de desencadear o processo de erosão do seu ser. ISTO é o Tempo! Em cinquenta anos você já havia se tornado um Grand Canyon. Bastou apenas um filete de água, um Rio Colorado, e uma sucessão de outros filetes e aí se encontra você: num alto de uma ponta que se esvai a cada dia, até que o grande momento chegue, e você caia no vazio que pertence a qualquer um. Cada um tem a sua história moldada em erosão pelos Rios Colorados devidos de suas vidas. Cada um possui o seu Canyon, mas a ação do Tempo é inexorável, e não depende de dimensões, nem de misticas, nem de acasos, nem de relógios que o pensam marcar suas horas. O Tempo não passa da areia que cai numa ampulheta. O Tempo é o cair da areia e nunca a ampulheta! Einstein errou! HUHUHUHUHUHUH!!!!!! Tempo é Movimento!
Olhei para baixo e por um segundo entendi a sua "verdade". E pensei então no tratado filosófico de Camus, que dizia que a vertigem nada mais era do que o desejo de pular. E neste momento Sigmund reapareceu, só que desta vez por trás, num ângulo que eu não consegui vislumbrar. E continuou:
- ..........o Sonho. O Sonho é o que existe atrás de você, meu jovem amigo. Ao contrário do que se pensa, o Sonho é o lastro do livre arbítrio. É a única coisa que faz você não cair para trás deste rochedo. É a representação da vontade de existir em pé. E é claro que ele nunca vai se concretizar, e você um dia há de cair, mas até lá o sonho te segura. O sonho é o músculo da alma. É o que te faz florir. E independe do movimento dos córregos, dos cometas, das explosões das supernovas, do Universo em expansão. Há uma expansão da alma. O sonho é a verdadeira gravidade das coisas. O Tempo é apenas a erosão das partículas; o movimento dos astros. O Sonho é a vertigem que nos move. E não se engane, amigo, até papagaios sonham! Estamos todos atrelados às erosões do Tempo-Movimento. Porém, sonhar é uma dádiva, uma vez que não se sonha, se está morto.
- Mas não são interdependentes, Sonho e Tempo, caro Sigmund? Perguntei eu.
-É claro, sua anta! Disse ele. - Um carro só anda caso as rodas rolem, e isso é atrito (Tempo). Porém, há duas possibilidades na vida: ou você aperta o acelerador, ou perde o freio ladeira abaixo. HUAHUAHAHUAHUAH!
E sumiu. Mesmo assim perguntei a mim mesmo. "Será que esse cume alto e fino e frágil existe porque estou em coma e chegou minha hora derradeira?" Foi bem naquele momento em que me vi sacudido pelo menino, meu paciente de quinze anos, letrado, nerd, e tão improvável ainda, embora não mais virgem.
-Acho que o senhor teve uma apoplexia de algum grau, ou entrou em estado catatônico, cataléptico, ou coisa assim. Disse ele.
- E o que foi que eu falei, se é que falei? Tem alguma coisa que eu disse, me conte por favor?
- Bom, o senhor balbuciou algo sobre sanduiche de manteiga com presunto....
Dispensei o moleque. Realmente logo seria o último ano do dia, quer dizer, último dia do ano, perdão. Mas que diferença faz? Aquela conversa com Sig me remeteu fisicamente ao Arpoador, onde sentado nas pedras, eu me via sozinho, apesar do formigueiro de turistas sem devaneios e criatividades, apenas sede de algo novo. Prazeres quaisquer...
Sentado numa pedra, olhando o mar, e a Lua que já partia o céu determinando o espaço do Homem, senti minhas mãos serem tocadas por uma menina de vinte anos. Demorei um minuto dentro daqueles olhos verdes até que pude perceber que pertenciam à uma de minhas pacientes: a menina.
Não sei como ela surgiu, só sei que seu semblante parecia irradiar a luz da própria lua, e por um momento me apaixonei . Então ela me disse:
- A luz da lua é o Sonho, o Sol é o Tempo. Devaneio e erosão, eis as partículas que fundem-se no Ser Humano. O universo é belo, não acha, senhor Jonas?
- Não consigo pensar neste momento. Preciso de uma casca de noz ralada com Nescau...
- Aqui está, meu amor. O senhor, meu psiquiatra, merece tudo que tenho para dar. E me entregou o copo cheio.
E assim fizemos amor em público, num canto de mar. E enquanto eu percorria seu corpo liso de jovem mulher, eu sentia a porosidade da rocha contra a minha pele de médico. E neste minuto ouvi Sig dizer em meus ouvidos, quase dentro de meu cérebro:
- Pele é lua, pedra é sol. Lua é sonho, sol é erosão. Sonhos são partículas da alma, sujeitas apenas a preencher nosso vazio original. Tempo é colisão de astros, é explosão de radiadores, são passos dados ao infinito da morte, e dos sonhos também. Einstein era um robô feito de sonhos, assim como vocês também são.
E ao ouvir suas sábias (ou erradas, vai saber...) palavras, eu pensava que sexo é Tempo, amor é Sonho, e os dois juntos dão razão ao ser humano que somos nós. Eu e a menina dos vinte anos, nos amando totalmente dependentes de sonhos e tempos.
Depois nos sentamos, e não percebemos a multidão que nos seguia com olhos atônitos, e risadas murmuradas e idiotas. E conversamos sobre o ano novo. E sobre a indiferença da data. Falamos sobre compartilhamentos de pensamentos, e vi que mais uma pessoa neste mundo além de mim pensava igual. Que não há ano novo. Tudo é novo enquanto houver movimento mental. E que tudo será velho enquanto houver movimentação física. E que tudo isso se confunde assim como 2011 se confundirá com 2012, logo ambos se tornando uma coisa só: a existência de uma roda que gira, e de um fogo que nos alerta e nos consome.
Passaram-se quatro horas de conversas e sonhos, até que Jonas viu-se acariciar por uma fosca e bela luz solar, que ainda não o direcionava de frente, mas raspava-lhe a fronte, tecendo em seus olhos sensações que se esfumaçariam, assim como a menina, que nunca existiu ao seu lado, apenas em Sonho, mas que custou-lhe o Tempo, e afinal, era sua paciente.
Mesmo assim, Jonas levantou, olhou para os lados já vazios de turistas, se dirigiu à uma poça de água límpida, que corroía lentamente a pedra do mar do Arpoador, e mijou. E ficou surpreso, pois o que saía dele não era mijo, era perfume. E tinha cor de champanhe.
(Continua... Feliz Ano Novo...)