domingo, 14 de agosto de 2016

É melhor cobri-lo agora. Tá frio.

 A lembrança é feita de sulcos de discos de vinil. Esse disco é ótimo! Meu primeiro disco foi um disco de dance music do final dos anos 70. Ha....! Que legal esse disco! Uau! Esses sonzinhos doidos girando na cabeça, devem ser sintetizadores - meu pai que disse! A capa de papelão tem um cheiro gostoso... Cheiro da papel velho, como eu gosto disso! Aqui na serra faz um friozinho tão bom que o cheiro fica mais forte, é tão legal isso... E eu adoro rolar naquela almofada meio branca, com coisinhas desenhadas em vermelho e laranja. Ela fica tão fresquinha nesse clima friozinho. É tão gostoso voar por cima dela! Cair com a cabeça como se fosse um ursinho fazendo um buraco na neve. Minha árvore também é tão legal - eu que plantei - e ela dá uma frutinha azedinha, hummm!

Meu avô tá la fora dormindo embaixo dela. Ai que medo que as formigas piquem ele, mas se até agora não picaram acho que não tem problema . Chegou o meu amiguinho pra brincar de Roberto Carlos, mas não to afim agora. Ele só se interessa pelo Ruy Maurity, que é chato pra dedeu.

Na casa do Leco tem um corredor enorme. Dá pra correr direto e fazer uma curva legal no final. Na casa dele a gente corre, é tão legal! Vejo nossas mães conversando nas poltronas pretas estilosas fumando pra cacete. Legal também é descer pra salinha da televisão que fica atrás de tudo. A casa dele tem cheiro de maresia e gato, e a Tata vai morder alguém a qualquer momento... dente de criança de três anos é foda! Minha mãe conversa com eles sobre coisas que eu não entendo e por isso não ligo. Mas é legal brincar! Se bem que só venho aqui quando ela vem. Será que alguém pode me trazer um copo de água?

O corredor escorregou e eu caio no chão. Me ralei a perna! Mas tudo é o circo. O circo é o que eu gostei mais ou menos, tem cheiro de bosta de cavalo e peido de elefante. Na colônia de férias a piscina era gostosa e grande, ai como eu nadei... To nadando! Mas sempre perto da borda porque acabei de aprender. Ganhei uma competição no CIB uma vez. Foi a única competição que eu ganhei sozinho na vida.

Uma menina disse que eu sou forte. Ai, que vergonha... to morrendo de vergonha. Lembro quando isso aconteceu. Ela tá olhando pro meu braço e rindo porque eu sou forte e eu sou apaixonado por ela. Nunca revelei isso. Faz tanto tempo... acho que se eu contar agora ela fica comigo aqui na sala de livros da escola. Mas não, deixa pra lá, ela não vai querer... Mas meu amor mesmo é a Dedé. A gente se beijou por trás da cortina do quarto dela um dia desses. Mas foi inocente, o pano ficou entre as bocas, e eu entrei num transe. Nunca tive uma "namorada" como ela sem nem ser namorada. Que lindo isso.

Sempre que eu ouvia um disco do  Led Zeppelin eu lembrava da primeira. Era o Led II, puta disco. Entra na minha cabeça como as memórias que nunca saem. Até hoje nunca a esqueço quando toco esse disco. Mas cadê a vitrola que meu pai jogou fora? Engraçado, devia estar logo ali na estante... Pera aí, vou colocar o disco pra tocar e apertar as luzinhas coloridas da vitrola que meu pai deixou, finalmente, eu usar.

Minha cabeça começa a girar... é como um túnel do tempo, fico tonto... me salvem por favor, eu sei que neste minuto eu preciso do... esse túnel do tempo é o do filme Perdidos no Espaço! Vinha antes dos Batutinhas....ai como eu gosto tanto; ai, como eu gostava tanto... Socorro gente, alguém me salve? Salvar do quê?


* * * 



- Sinto informar... Acho que não vai ter mais jeito. Alzheimer é muto dolorosa... Melhor vocês irem para casa descansar.

- Sim... é melhor cobri-lo agora... Está frio...








domingo, 7 de agosto de 2016

Carrossel

Eu fui criança, um dia. E naquela época de nuvens de algodão e pipoca colorida havia na beira de uma lagoa um lindo carrossel com espelhos diversos e luzes que piscavam mais que estrelas e cavalos. Esses cavalos subiam e desciam, como que pulassem, cavalgassem, enquanto isso o carrossel girava seu giro infinito que pode machucar, mas que enfeitiça muito mais a dor.

E eu lembro que meu rosto ficava atônito quando eu entrava no parque e dava de cara com o carrossel. Era como se um gigante colorido se postasse na minha frente; uma esfinge e uma pergunta; um arco-íris no solo.  Lembro que era impossível passar ao largo do carrossel, pois simplesmente era difícil demais isso! Ele nos atraía como a primeira e mais importante atração. E a sua musiquinha de anos 20 era incrível, ao mesmo tempo, passada e original. Um mantra eterno de show de cowboy.

Mas o que importa mesmo era o meu medo tamanha fascinação que eu sentia pelo carrossel. Eu tinha medo de entrar e ser sugado para outro plano. Eu tinha medo que numa girada o meu cavalo de repente se soltasse e começasse a voar em direção a uma terra mágica. Eu tinha muito medo de que a tonteira da circunferência me transformasse em adulto.

E por isso eu raramente andava de carrossel. Infância perdida? - Não. Acredito que não, pois eu sempre gostei muito de admirar as coisas muito mais que utilizá-las. Mas minha participação não ficou incólume já que os anos se passaram e um belo dia o carrossel havia sido retirado junto com o parque, e tudo foi como se voltasse ao anormal. E eu percebi que ali, num ato humano de outro ser haviam traçado uma linha finíssima entre o que eu era e o que eu estava passando a ser.

E foi assim que eu cresci. Deixei de ser criança quando o carrossel foi levado embora? -Não! Mas com certeza levaram minhas ilusões junto. Só que um dia eu acordei girando, e girando eu fui para sempre subindo pelo azul, enfiando nas nuvens minhas razões confeitadas de jujubas, e assim fui vivendo, e de repente abriu-se no céu um vácuo e surgiu o carrossel cinza, escurecido, enrugado, enferrujado e sem girar.

E a chuva que caiu foi um choro; e o sol empalideceu e a noite brilhou com sua névoa de jardim perdido para sempre. Acho mesmo que perdi o carrossel de vez. Mas feio, roto, sem luzes, ele ainda girava devagarzinho, como se a mão de Deus não quisesse deixar decepcionar as crianças do mundo. E eu vi que eu ainda era criança e que na verdade nunca havia me tornado adulto.

Então chegando perto do carrossel eu o toquei com os dedos tímidos e tremidos do velho que eu era, e de repente tudo se acendeu. Eu era mesmo criança apesar dos dedos e das tremidas e da morte. E me enchi de vida, porque ao montar de novo num dos cavalinhos do carrossel eu percebi que ele apenas gira e que um círculo nunca vai para a frente (por mais que tente). Hoje, por mais que insistam que tenho que levantar e saltar dele, eu continuo circulando infinitamente para lugar algum. Afinal, é uma escolha ser círculo ou ser reta, e eu havia escolhido o meu carrossel, com suas luzes e seus apetrechos, e seus cavalos de resina e seus espelhos de lata e suas luzes de poste de esquina velha, e sou feliz.

Quem quiser pode me escrever que eu dou a senha secreta do carrossel.







quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Lixo

A noite é bela. O Osmar não concorda. O coitado, ele passa a noite toda segurando as pálpebras de sono. Deitado no banco de madeira da entrada do prédio, sua coluna deve doer, e ele deve se perguntar à toda hora o porquê de ser pobre. Tenho a certeza de que ele pensa assim toda hora em que algum morador entra no prédio de madrugada. Mesmo assim, duvido que ele saiba o quão é bom ter um quarto numa casa quentinha te esperando da rua. Mas ele deve ter um canto em algum lugar. Todo mundo tem mesmo que nem seja um canto. Já eu contemplo a lua sempre que dá. Geralmente quando o caminhão vira a esquina da praia aí sempre dá mesmo. Eu olho pra ela, ela lá em cima zomba de mim. Tenho certeza que a lua ri de mim. Eu acredito nessas coisas talvez porque a minha vida seja de noite. É na noite que as coisas acontecem. O Osmar diz o contrário, ele diz que de dia a cidade funciona, ela se movimenta, tem vida. Você sabia que tem muito mais rato do que gente na cidade, e que eles acordam à noite? Mas rato não produz nada, só destrói - é  isso que o Osmar fala. Será? Acho os ratos mais civilizados que os homens, esses não valem nada, mas os pobres ratinhos só cuidam de se alimentar, se carregam doenças é por causa do lixo que o homem joga por aí. O Osmar diz que não, ele diz que sem o lixo não haveria os ratos. Porra! Então sou eu que estou certo, é ou não é?

Eu não escolhi essa profissão de catar lixo. Mas não sou catador mendigo não, eu sou empregado público, eu vou no caminhão, eu limpo esses lixos que os ratos adoram. Eu ganho salário! Às vezes quando o caminhão tá na retona indo direto sem parar eu de repente sonho acordado com a realidade que vivo dormindo. Engraçado isso. Eu vivo o sonho que vivo realizando! Não... é por aí. Me confundi agora. Mas de qualquer forma eu gosto da minha profissão de pegar nos sonhos dos outros. Porque lixeiro é isso: a gente recolhe e joga fora os sonhos deixados nas calçadas da cidade. Pense bem: se alguém sonhou comprar um saco de batatinhas fritas, comeu, e jogou fora, aquele saco nada mais é que o que restou do sonho. Sonho também suja, sabia? Sonho não é coisa abstrata não. Sonho deixa marcas, e essas marcas são sempre largadas em algum lugar como restos de algo que foi comido, lido, usado. O lixo é sempre o resíduo esquecido do sonho, e cada sonho tem o seu resíduo que é lixo. Se a gente for pensar assim sonho e lixo são a mesma coisa. Não tem a menor diferença. O Osmar não concorda com isso também. Aquele filho de uma égua não concorda com nada do que eu digo! Mas eu entendo: ele dorme de noite num pedaço de madeira de lei e trabalha de dia. O Osmar não tem canto. Até lixo tem canto, menos o Osmar, coitado...

Daqui a três dias é o aniversário de uma pessoa muito especial. Não vou falar o nome porque pessoas especiais não têm nome, pessoas especiais não precisam de nome. Nome a gente usa pra chamar quem a gente não conhece. Quem a gente conhece bem simplesmente tá lá, pra toda hora, que nem rato, que nem lixo, não tem nome, pra quê... Eu também fico pensando nas estrelas. Esse meu trabalho é pesado, não digo que não. Mas é por isso que eu sou forte e disposto, não frequento academia de ginástica nem essas bobagens dos garotos novos. Eu sou da roça! Criado com inhame e batada-doce; ovo de galinha pega na marra pelo pescoço! Não é qualquer um que faz meu trabalho não! Um colarinhozinho de merda, um político, um playboy não tem calo nas mãos pra isso não. Tem que ser macho! Vai ver é por isso que de vez em quando eu vejo a lua rir com as estrelas. Vou passar agora na frente daquela menina. Que menina linda! Mas ela não olha pra mim. Ninguém olha pra mim, é claro, tá todo mundo dormindo. Ah-ha!!! Te peguei, né? É que a menina fica acordada que nem eu, eu sei, eu já vi a janela dela acesa e ela olhando as árvores lá do quarto andar. Eu gosto dela, sabia? Deve ser porque a menina também curte as estrelas. Ela já me viu muitas vezes junto com a galera coletando o lixo que espalha pela cidade bonita. Eu, ela e o lixo, o Osmar e os sonhos. Todos presos na cidade. Quem será que vai nos coletar um dia?