A vida é desígnio, ou é cheia de desígnios - não sei. Só sei que um dia eu acordei. Literalmente, eu acordei em algo que não posso chamar de realidade, pois não entendo o que é. Nem sei se é alguma coisa. Aliás, ser alguma coisa é fruto do nosso querer e dos nossos desígnios. Ou será que são os desígnios que nos querem ser o que devemos ser para "eles"?
Um dia eu acordei cedo, como de costume, fui olhar as vacas da fazenda, conferir as pitangas da estação, e visitar minha hortinha orgânica bem caseira e bem dividida, e no fim me embrenhei por uma trilha ensolarada por onde bougainvilles vermelhas se espraiavam pelas árvores e madeiras secas.
Num momento tive a impressão de estar sendo seguido e me virei, sem medo, pois o Sol me protegia com sua claridade reveladora, e foi quando de repente ao me virar senti uma pontada no ombro. Pensei provavelmente ser de um espinho inofensivo de uma das bouganvilles, que realmente tomavam um espaço grande, quase uma florestinha de flores rosas e vermelhas - deviam estar crescendo sem poda há uns 20 anos pelo menos.
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O tempo passou. Hoje sou casado, tenho três filhos lindos e uma mulher maravilhosa. As flores continuam por lá embora a fazenda tenha sido vendida para desconhecidos. Vivo bem com a renda das propriedades que vendi ao longo de minha vida. Possuo apenas 55 anos, não me considero velho ainda. Minha força é boa. Continuava subindo escadas pulando os degraus e ainda corria em trilhas da cidade, também repletas de bouganvilles vez em quando.
Sou de tez muito branca - o Sol me agrada, me anima, me alimenta, mas passou a fazer mal à minha pele muito alva. Me coço muito quando fico exposto a ele por algum tempo. Evito. Um dia desses notei como realmente o meu ombro coçava sem aviso. Ora! coceiras não avisam! Que pensamento bobo. Mas depois de um tempo percebi que a coceira era bem localizada, mas pelo ângulo em que ficava não tinha como vê-la muito bem pelo espelho.
Comprei um espelhinho vagabundo de camelô e comecei a tentar ver melhor que espécie de "cravo" era aquele que me incomodava. Percebi uma vermelhidão tola e não dei muita importância de novo. Um dia minha mulher insistiu que eu fosse fazer um check up completo e fez questão que eu fosse num dermatologista dar uma olhada no ponto - já era um ponto - que me incomodava. Fui.
O dermatologista foi claro, examinou, e disse que daquilo eu não morreria, mas que poderia haver algum cravo egoísta e gordo, ou uma farpinha encubada há anos sem causar maiores danos, e sugeriu uma punçãozinha quase sem dor, um cortezinho que resolveria o problema. Aceitei.
Assim foi feito. E como era bem do lado traseiro do ombro não puder ver muita coisa, permaneci de olhos vagando pelo consultório enquanto o médico procedia na retirada da farpa. Não era uma farpa.
Havia um espelho no seu consultório, na sala de procedimentos cirúrgicos, e no qual seu rosto refletia perfeitamente naquele momento. O procedimento havia acabado e ele segurava com uma pinça algo muito pequeno, mas que me fez sentir um frio que subiu pela espinha até meu córtex da minha alma. E ao ver pelo espelho o seu olhar eu gelei!!! como um defunto! Era o olhar de estarrecimento. Impossível de descrever. Algo como se tivesse visto alienígenas ou fantasmas! E me disse... com essas exatas palavras: "...colocaram um chip dentro de você..." Desmaiei.
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Passei tempos sem lembrar de nada, até este momento em que escrevo esta carta de despedida. Anos devem ter se passado. Sei que fui liberado de uma instituição psiquiátrica de qual precedência desconheço. Não imagino quantos anos possuo no momento. Mas vejo meu cabelo inalterado. Minha pele em nada mudou, meus olhos claros não adquiriram a turbidez normal dos idosos. Posso ver neste momento que nada mudou fisicamente em mim. Mas ao ligar a televisão vi direto num canal qualquer de notícias a frieza no olhar que apresentava. Por mais paradoxal que possa ser percebi que algo havia mudado em mim e não nos outros.
Procurei por minha mulher e lá ela estava, como se nada houvesse passado; meus filhos - da mesma idade de antes - iguais jogando vídeo-game felizes e concentrados se recusavam a tocar no jantar, como sempre. Tudo estava igual, mas o âncora do jornal da televisão e aquele olhar... que parecia... direcionado à mim... me fez sentir algo nunca sentido em minha pele. Um estarrecimento celular, uma compressão mitocondríaca, uma sugestão de algo que não era vivente, não era vida e que havia se alterado em mim.
Percebi então que não existia mais amor em mim. Não existia mais reflexão das coisas (além dessas que conto), não havia mais esperança, nem paradigmas, nem filosofia, nem ciência, nem vontade, nem práxis, nem nada. Não havia nada em mim. De alguma forma haviam retirado minha essência. Eu era apenas um cego cuja retina captava a luz, mas ela em nada me significava. E não havia compaixão! Não havia mais compaixão em mim... E sem compaixão nada existe. Portanto esta é mais que uma carta. É uma declaração de morte prematura. Há uma faca na cozinha. Tenho certeza de que não vou sentir dor.