segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Mocotó

Hoje vôo
Pássaro não sou
Sou pedra
Vôo para baixo
Amanhã serei pássaro
Voarei para cima

Amor, me segure
O que você disser
Não faço
O que você quiser
Não faço
O que você falar
Não ouço

Não precisaram me ensinar
Há muitos anos
Eu jovenzinho de dar dó
Sozinho já sabia
Só voa para cima
Quem a mãe fez
Gostar de mocotó



sábado, 28 de setembro de 2013

É isso aí

Tem um papelzinho na minha frente, preso nas teclas do meu piano midi, que tá preso no computador, que tá preso na parede, que tá presa no meu quarto, que tá preso em mim, e eu queria tanto me livrar dele. Esse papelzinho eu que escrevi uma idéia pra escrever depois uma outra coisa, tá me atrapalhando a escrever agora uma coisa outra que não tem nada a ver com ele. Vou tirar ele daí - pronto!

Parece papo de deficit de atenção, mas não é, embora eu o tenha. Vou começar o texto afinal!




Eu precisava de uma fogueira. De uma fogueira que fosse queimando o som da minha música enquanto eu fosse tocando. Eu precisava estar no centro de um sítio, com cachoeira, com árvores, e abelhas trabalhando pra eu passar mel no meu pão feito por mim mesmo. Eu precisava de uma fogueira que conversasse comigo. Que evaporasse minhas lágrimas dentro de seu calor fumegante de coração. Eu precisava de uma fogueira, pois violão eu já tenho, já tenho as músicas e invento novas. Queria um fogo que ficasse azul quando se jogasse uísque bourbon nele. Uma fogueira que bebesse comigo. Como um amigo que dividisse as dores comigo. Como um cão, que respondesse com os olhos às minhas perguntas feitas com palavras. Eu precisava de um cachorro que na hora do meu aperto sentasse ao meu lado e lambesse as patas. Não as dele, mas as minhas também. E que na hora da pergunta, sua resposta viesse com um bocejo enorme, sua língua atingindo o universo, do comprimento do seu suor. E que logo depois me olhasse de soslaio e me disesse algo através de uma remela parecida com lágrima.  E que brilhasse ante o fogo da fogueira. Eu precisava também de uma flor amarela, que repousasse incólume na noite sem vento, e que me olhasse de dentro, sem olhos, sem bocejos, sem remelas, mas com uma alma terrivelmente grande. Que engolisse o mundo e esbanjasse luz de clorofila em minha cabeça embaçada pela refração do ar quente subindo e tornando tudo em sonho. E eu também precisava de um passarinho, que fosse marrom, e tivesse um bico longilíneo. E que batesse na minha janela anunciando minha hora de compôr, de treinar meu violão de fibra de tempo. Eu precisava subir nesse passarinho e voar... E que em meus bolsos eu tivesse o dinheiro suficiente para entrar no supermercado que eu mais gosto, olhar tudo, roubar um pedacinho de queijo, e sair feliz sem comprar nada.

É isso aí.



sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Os últimos momentos de um homem caindo de para-quedas

Enrolou seu para-quedas com a perícia de sempre. Tinha cinquenta anos de idade e vinte e cinco de queda. Sabia melhor que ninguém que a experiência fazia o tombo suave. Naquele dia lindo de sol deixou  a família em casa e foi se divertir com um grupo de amigos para-quedistas. Depois todos tomariam cerveja. Era o seu programa relaxante da semana.

Fez todos os procedimentos de segurança e subiu no aviãozinho como era de costume. Subiram há uma altitude de uns sete mil pés. Bem alto, quase um Jumbo, dava para se divertir bastante assim. O visual era lindo. O horizonte o chamava. Logo iria se sentir um pássaro.

Fez os últimos ajustes, se segurou nos cantos da saída e enfim pulou no vazio. A queda foi perfeita. O frio na barriga uma delícia. O vento na cara era como se atingisse o paraíso. Levantou as mãos e sentiu o vento ultrapassar cem quilômetros por hora. Como a vida era boa! Contou uns vinte segundos, pois gostava demais da sensação da queda, onde podia fazer suas cambalhotas e malabarismos, e finalmente acionou o "cordão".

Não abriu! Puxou o segundo mecanismo - o de segurança. Não abriu também! 

Desesperado começou a futucar o para-quedas na esperança de alguma coisa que o salvasse - quem sabe um terceiro cordão de salvamento - embora soubesse que não havia. Seu cérebro quis acreditar nisso. Esse procedimento demorou apenas segundos. Quando passou ele olhou para os lados na busca de algum companheiro que talvez ainda pudesse não ter aberto o seu para-quedas, e assim ancorá-lo. Nada! 

Enfim olhou para baixo, e pela primeira vez em vinte e cinco anos teve a impressão de que a queda era mais rápida do que o usual. Seu impulso foi o de rezar, então se lembrou de que era ateu. Olhou então em volta e viu montanhas que pareciam paralisadas no firmamento, porém, o tempo, sentia o tempo entrar pelas fibras de sua pele como o vento que cada vez aumentava de velocidade machucando-o de frio. Seu estômago parou, suas mãos suadas congelaram dentro das luvas, e deu-se conta do quão inútil seria o capacete que havia lhe custado cinco mil reais e era lindo.

De repente avistou um para-quedas de um companheiro há uns trezentos metros de distância do seu. Tentou gritar. Foi inútil, e sabia que seria. Tentou direcionar seu corpo na direção do companheiro, utilizando o vento como propulsor, e as manobras bem conhecidas pelos para-quedistas experientes e que comumente chamavam de "vôo". Não deu certo. Passou por ele como uma pedra há uns cem metro de distância. Foi aí que notou o quão rápido era o vôo ao chão. Apenas pôde notar a mãozinha do companheiro agitando...

E naquele momento, em que mais nada poderia ser feito, sentiu uma calma inóspita. Uma calma à qual poderia chamar de paz. E pensou que nunca sentira tanta paz na vida. E pensou na ironia que é  sentir paz na hora derradeira. E isso o remeteu ao interior de São Paulo, onde havia nascido... a fazenda... E sua infância passou pelas suas bochechas junto com o vento que subia. Começou involuntariamente a se lembrar de coisas que há muito havia esquecido. A pamonha fresca! Ah... como era tão boa! Lembrou-se do dia em que correu dos feirantes depois de roubar melancias que espertamente escondia debaixo do caminhão. Lembrou da surra que seu pai lhe deu, e do carinho de sua tia. Que tia gostosa era aquela! Puta-que-pariu! Foi realmente a melhor foda da sua vida. A iniciação pode ser boa ou péssima e a sua havia sido maravilhosa. Sua tia tinha seios frutados. Escondidos perto dos cavalos ele aproveitara o que a maioria dos meninos do interior fazia com galinhas. 

Lembrou-se da Juliana, que depois de dois anos se mudou para a França com sua vontade de ser atriz e um produtor mentiroso que também a fez cair em queda livre. Como sofreu! Mas naquele momento isso lhe deu vontade de rir. Uma felicidade inexplicável. Percebia aos poucos que sua mente - talvez por causa da velocidade misturada com a endorfina, adrenalina, e todos as outras "inas" inerentes à sua situação - ia aos poucos saíndo da realidade e entrando num sonho. Percebeu que a concepção das coisas naturais ia mudando, e que o universo ia se abrindo à sua mente, da mesma forma que um dia lera num livro de Huxley. Era um estágio de meditação forçada. Um estágio de inoperância, onde nada lhe restava, e seu controle das coisas havia sido reduzido a zero. Pensou ironicamente que a vida no fundo é assim. E isso o deseperou por um instante, pois nada mais seria diferente de uma simples queda livre de um avião onde o para-quedas não funcionava. Tentou agarrar o Sol, mas este apenas o queimava o rosto.

Pensou nos seus sonhos que não realizaria, e de repente notou o quão pequenos eram eles . Pensou nas mulheres que não comeria mais, engraçadamente pensou em sua mãe, e pensou que um dia apanhou por ter se atirado do telhado apenas com um guarda-chuva de proteção. Como havia apanhado àquele dia..... Pensou que a surra de nada havia valido a pena, pois fora o começo de sua corrida para os céus. Pensou na morte, mas não conseguia pensar nela, embora tentasse muito, pois era evidente e inevitável. A vida havia lhe sobre-tomado. Talvez fosse o excesso de oxigênio invadindo suas narinas. Sentía-se um passarínho como antes.

Pensou na Michelle, e no erro que foi não pedi-la em casamento. Deixá-la escapar como uma mineirinha envergonhada e carente foi um erro! Pensou: ai se eu pudesse mudar a vida... e pensou que talvez não conseguisse. 

Olhou de novo para baixo e viu a terra amarela e algumas copas de árvores, fechou os olhos e não viu mais nada.




(Inspirado em Victou Hugo.)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Imprevisível

A vida é mágica, boa, ruim, e imprevisível. 

Um casal se amava em frente ao Copacabana Palace. No escurinho da areia, amavam deitados. O mar lhes vinha roçar os pés de vez em quando, e quando o amor realmente esquentava vinha lhes lamber os cabelos, como se quisesse participar. Acabava por lhes esfriar um pouco, mas isso só ajudava a dar mais vontade de recomeçar, e assim ia seguindo o casal, abraçado como se fosse um só indivíduo. Ninguém repartia deste amor carnal e belo, ninguém conseguia vê-los a mais de um metro dada a escuridão de um poste estrategicamente queimado - às vezes a prefeitura até que acertava sem querer. O vento que os secava também os molhava de areia, e o atrito desta aumentava a fissura do amor. A maresia era como fumaça emanando de seus corpos, e o perfume das estrelas do mar era o odor suave que transbordava como essência dos seus poros, da epiderme amada. Ninguém sabia, ninguém assistia, ninguém existia, e era para ser assim o grande amor alcoolizado de sal.

Quando de repente surgiu um daqueles tratores de limpeza da Comlurb e passou exatamente por cima deles. O trator manipulado por dois funcionários infelizes na vida, e ignorantes da situação, matando o sono com café mal coado, nem perceberam que podíam matar alguém também. Continuaram a marcar a areia húmida da praia com seu rastro de marte.

Como é a vida, não é? Imprevisível! Quem poderia prever que um casal se amando enlouquecidamente, pudesse estar amando pela última vez sem saber? Pois é assim a vida - feita de esquinas - nunca se sabe o que virá, como virá, ou quando virá. Neste caso, particularmente, quando poderá ir embora! Fria como a luz, desconcertante como um beijo que pode durar apenas um segundo de uma eternidade mal programada, mas exibida, e mal raciocinada: a vida é um procênio sem ensaio! Quente como o Sol de um calor penetrante e longínquo. Já dizia uma música que ela vem em ondas. Será? A vida vem como vier. Não existe passado, nem presente, nem futuro. Ela é o contar de um segundo que já foi. E o amor é apenas um momento, um verão profundo, uma queimadura de estrelas na pele, um breve bronzeado de uma noite de maresia. Quem vive não precisa, nem deve olhar muito para a frente, só para os lados, porque direção é coisa certa, mas destino depende apenas da correnteza, e não há tempo. Não há tempo de se virar quando um trator da Comlurb resolve lhe mostrar o que é a vida que você perdeu. Que pena...

Porém, por mais incrível que possa parecer!, o trator passou suas imensas rodas de avião pelo lado externo deles. Ou seja: os dois abraçados, completamente deitados, num amor terminal, flácido de alegria, e repleto de endorfina, não se moveram. E estáticos, formando o desenho reto, quase geográfico de dois corpos em união,  cegos pela escuridão da noite e surdos de ilusão,  não viram, nem notaram o imenso trator passar por cima deles sem nem mesmo resvalar areia em suas peles tardias. O dois homens do trator, já a uns 500 metros de distância à frente, nem puderam dar conta dos destinos que quase ceifaram, e que o acaso os proporcionou. A todos! Esse acaso ininteligível que nos amadurece e nos destrói, que nos tira daqui, nos põe ali, e que somente Deus consegue cavalgar. 

- Amor...
-Sim, querida?
-Vamos de novo? 
- (risos e beijos) - E assim continuaram incólumes, sem perceber quantos cometas raspavam a Via Láctea naquele exato momento.

É... A vida é mesmo, mágica, boa, ruim, boa, ruim, boa, ruim, boa...e imprevisível!




domingo, 8 de setembro de 2013

Continho

- Doutor! Eu não sou craqueiro não! Eu até que gosto de uma pingazinha, mas não tomo droga, juro! Esses macacos (ele também era negro) ficam querendo tomar o meu lugar, mas o doutor sabe que eu cuido bem do carro. Não deixa eles estacionarem pro doutor não, por favor.

Ele não era doutor. Sua profissão não vem ao caso. Na verdade...pra falar a verdade, com muita sinceridade, ele vendia crack. Ó, ironia do destino, das coisas. Ele estava cagando se esse guardador de carro, sujo e imundo, tomasse alguma coisa forte. Deu dez reais na mão dele, tomando o cuidado de não encostar na sua pele curtida das caracas de quem nunca tomava banho.

Também estacionava naquela ruazinha de copacabana uma mulher, nos seus vinte e cinco anos, sempre carregando com dificuldade seu violoncelo. Ela tocava na orquestra de algum lugar, estudava com um professor particular, já era profissional, mas quase não dava pra pagar o aluguel, portanto fugia do senhorio dormindo várias vezes por semana na casa do namorado que morava naquela rua. Almejava um dia, quem sabe, ir estudar na Áustria, mas quem sabe...

Um dia o "doutor" traficante apareceu morto junto ao seu carro. Provavelmente coisa do crack. Foi descoberto primeiramente pelo guardador que obviamente não chamou a polícia, embora não tivesse nada  a ver com o assassinato, mas como cautela e canja de galinha não fazem mal, o bom instinto malandro (e isso ele era mesmo) não o deixou querer se envolver.

A polícia logo bateu lá na rua, não se preocupou em isolar o lugar (como nos filmes americanos), e foi interrogar o jornaleiro que possuía a banca bem próxima ao acontecimento. O jornaleiro era um italiano de bigodões que raspava as próprias raspadinhas, que vendia na esperança de algum dia ganhar uma bolada e vender a banca. Gostava de mulher e guardava sempre uma grapa atrás do balção. Seu nariz era circunflexo e vermelho.

Disse à polícia que na verdade não sabia o que havia acontecido ( é claro que ele sabia, jornaleiros sabem de tudo!). Disse que o morto era um sujeito distinto, que namorava uma menina que vivia carregando um instrumento grande e pomposo, bonita e calada. E revelou que ele a traia com o travesti que morava na esquina e batia ponto em frente a portaria de seu prédio, que ficava em frente à banca de jornal. Mas que isso ninguém sabia!

A polícia investigou uma possível tentativa bem sucedida de suicídio, mas no fim das contas acabou dando uma coça no guardador (que nada tina de culpa, mas fedia muito). Bateram tanto no coitado, que ele acabou morrendo. A polícia tratou de depositá-lo numa vala.

Passaram-se uns meses e um inspetor de polícia reapareceu na rua do crime, e investigando melhor os fatos concluíu, através de uma perícia técnica em laboratório, que o morto havia sido assassinado por conjunção de droga misturada com duas sementes de noz-moscada (que dá barato e é perigosa). Pareceu-lhe que sua vida desregrada e seus casos amorosos eram tantos, que o crime acabou arquivado sob a explicação simplória de ter havido vingança de alguma prostituta qualquer, possivelmente o travesti. Este foi autuado e liberado após mostrar o bumbum pro delegado.

Sabe-se que os gatos são felinos muito dados às artes e à música, embora calados e misteriosos. A mitologia que se criou deles é ímpar. Acredita-se que conseguem enxergar o invisível aos seres humanos, e que sua aura traz sorte ou azar, além de possuírem várias vidas - simbolizam os artistas vãos e pobres.

Às vezes, sempre a noite, pode-se confundir o som de alguma gata no cio, num intervalo de oitava musical, em perfeita consonância com a doce e triste fricção de um violoncelo. Dos telhados da rua, misturando-se à maresia que corta o frio de copacabana, alguém resta vivo.



sexta-feira, 6 de setembro de 2013

CHARGE