quarta-feira, 18 de junho de 2014

O Trânsito


Pegou as chaves, a carteira, abriu a porta de casa e saiu pela portaria do prédio. Entrou no carro estacionado uns dez metros do prédio. Deu a partida e foi-se.
O sinal da esquina abriu em uns cinco minutos. Acelerou, dobrou à esquerda, guiou uns trinta metros e parou. O trânsito parecia intenso. Ficou parado, estagnado, por alguns minutos. Finalmente os carros começaram a seguir em frente. Ele precisava chegar no Recreio dos Bandeirantes às oito e meia da noite. Sua pontualidade  incomodava ao mesmo tempo que o orgulhava. Havia uma pessoa esperando, e ela não devia esperar.

Dobrou à Pompeu Loureiro, que fluiu normalmente, e isso o animou. Subiu o corte em direção à Lagoa. As placas de velocidade máxima impostas pelo governo pareciam imbecis - cinquenta quilômetros por hora num trecho praticamente expresso era a quintessência da ganância do Estado. 

Desceu o corte, completou a grande curva, subiu o viaduto e caiu no maior engarrafamento impossível de prever. Carros se amontoavam de forma caótica entre as linhas do trânsito, e as marcações das pistas já não faziam o menor sentido dentro daquela anarquia automobilística. Era tudo a síntese de um movimento educado ao avesso que representava um viver sem lógica, o existir sem leis dentro de regras criadas pelos desgovernados e sua educação mesquinha, unilateral, egoísta e de certa forma altruísta. O Estado quando não age impõe as regras básicas da sobrevivência, e ele não estava pronto para isso. Nem ele nem ninguém. Tratou de se embrenhar no caos e em segundos era mais uma peça do imenso jogo de xadrez alucinado das ruas do Rio de Janeiro.

Nessas horas a primeira coisa que se faz é olhar o relógio. Então se descobre que o tempo passa independente do trânsito, e isso o impingiu uma certa consciência de mortalidade, que o incomodou agudamente. É no nó do trânsito que grandes músicas são criadas, grandes poemas esquecidos, e grandes amores lembrados. Nessas horas vivemos a estagnação, e presenciamos a velhice e a incapacidade. Entrou em desespero médio, e isso o fez cortar alguns carros, ouvir xingamentos, lidar com taxistas ineptos e fora da ordem, ônibus como elefantes, e carros da polícia cujas luzes ardem aos olhos. 

Num andamento de trinta minutos conseguiu finalmente chegar ao fim da Lagoa bem no ponto onde dobraria em direção à Gávea, onde sabia que o trânsito estaria provavelmente pior. Nessas horas a esperança bate como um vácuo no caminho, e realmente ele acreditou que seria homenageado. Mas, não. O cruzamento desprovido de guardas de verdade era gerido por fantoches vestidos em  trajes fosforescentes, colocados ali apenas para preencher vagas de empregos desprovidos de vagas reais. Ou seja, pensou ele que Emprego é algo muito diferente de Trabalho. E pensou ele na quantidade de pessoas que acham que exercem um trabalho, mas que na verdade apenas dividem um emprego com milhões, se julgam especiais e se consideram protegidos, mas que na verdade vivem a ilusão do espaço, assim como o trânsito, o engarrafamento de funções transforma um lugar numa imensa hipocrisia.




Dentro do Túnel Dois Irmãos (que leva à São Conrado, que fica antes da Barra, que fica antes do Recreio) seu tempo já havia praticamente se esgotado, e com certeza chegaria bem atrasado. E para seu desespero o túnel estava invariavelmente constipado, como um cu cheio de merda. Sua cabeça já doía, e o pânico já não era juvenil e sim patológico. Foi tomado por uma paúra que quase o fez andar à pé, abandonar tudo e se tornar escravo da liberdade. Palavras educadas eram medidas e se transformaram nos maiores xingamentos já proferidos à raça humana. 

Finalmente fora do túnel o pânico passou, e num lapso de espaço acelerou como se quisesse chegar ao céu antes da hora. Corto uns quatro carros pelo lado direito da pista e emborcou pelo lado de baixo da via onde quebra-molas bem escondidos o aguardaram para foder seus pneus.

Conseguiu galgar algumas dezenas de metros e logo se viu afunilado pela inteligência arrogante do urbanista filho-de-uma-puta que traçou aquela reta oblíqua. Sua cara já não servia a um encontro, seja qual fosse a natureza dele. Pois mais um túnel surgiu, e ele teve que degladiar contra seus concidadãos competidores - carros - todos mal-educados, vertidos à mais pura segregação modelística, e faróis que se emitissem lasers destruiriam uns aos outros.

Enfim na Barra da Tijuca! Olhou o sinal vermelho, recebeu uma ligação chata perguntando onde ele estava. Tinha cinco para chegar ao fim do Recreio dos Bandeirantes - meta impossível de cumprir. Como o mundo é uma bosta, como o governo é uma merda, como o meu encontro é chato, nada vale tanto esforço! 

Embicou na entrada de um shopping center bem grande, pegou o cartão do estacionamento e cuspiu na máquina que lhe dava as boas vindas. Estacionou no G-5, reclinou o banco, tocou uma punheta, e foi levado a outra dimensão.

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