domingo, 25 de agosto de 2013

Interstícios

Quando soube que os bueiros da cidade estavam explodindo tratou logo de colocar seus trapos em cima de um e se aconchegar gostoso. Era da rua, nascido da rua, vivido da rua. Zanzava pela cidade debaixo de sol ou frio, em busca de lixo. Não tinha acesso a lugares privados, por isso comia pior que as baratas, e já possuía idade suficiente para querer morrer. Por isso se aconchegou em cima de um bueiro e pensou que, quem sabe algum não explodiria por baixo dele durante seu sono. Seria uma morte súbita, assim como a vida.

Putz... e agora?  Ficou legal, acho. Será que está no nível? Será que o editor vai gostar? Não posso perder essa chance de jeito nenhum. Essa angústia me perturba a mente. Vou lá na cozinha comer alguma coisa e continuar. Preciso entregar esse texto amanhã... Não posso perder essa chance de jeito nenhum!

Não tinha nada a perder, pensava. Já vivera o suficiente, e era como se nada houvesse vivido. Passava por alguma rua chique do leblon e desacelerava o passo quando via a vitrine daquele restaurante maravilhoso. A gente fina comendo bem, se deliciando com coisas as quais ele nem sabia o que eram. Imaginava o que seria aquele creme branco com um montinho preto em cima que derretia. Sabia que derretia por que desacelerava o passo quando passava pela vitrine, e assim podia ver melhor. Passava com vergonha, constrangido, mas uma estrela de felicidade brotava em seu coração só pelo fato de estar perto, de ser vislumbrado por algum cliente da casa. Sentia-se participante do jantar, mesmo sabendo que não era nada, não significava, não pertencia, e a vida para ele não possuía nenhum significado por ser assim, tão gélida para uns e tão calorosa para com outros. Mas se contentava com seu pedaço de pão recém achado no lixo da esquina, e quando o comia devorava sem a finesse que via, mas sentia o gosto da lagosta desconhecida do restaurante fino. 

Pronto! Acho que essa boquinha boa vai me dar alguma inspiração. Adoro sanduíche de lagosta do almoço com mostarda da noite. Bom demais! Era do almoço...mas tudo bem. Lagosta não pode ficar muito tempo na geladeira que estraga fácil, é bom comer logo. E tava boa que dói. Agora de volta ao papel!

Deitou-se sobre o bueiro de novo. Havia um bem legal em copacabana. Era grande e não era frio como os outros - bom indicador de que poderia explodir, quem sabe... Queria uma morte limpa, rápida, se possível que nem sobrasse seu corpo! Já morreria cremado, ótimo! Menos trabalho para a sociedade. Já vivera muito, pensava. Já passara por tudo de ruim que se podia imaginar, e mesmo assim nunca provara aquele creme com o negócio preto que derretia no meio. Que vida injusta era essa. Vida de cela, de gaiola, de sofrimento e penúria. Esperava pelo bueiro simplesmente porque não queria tirar sua vida. Pensava que se nada havia ganho da vida, então que pelo menos ela o tirasse dela. Era sua filosofia não se matar. Na verdade tinha medo.  Melhor morrer sem saber.

Bom, o texto tá fluindo. Ainda bem que é um teste apenas, não preciso escrever mais que umas duas laudas, ótimo! Se o editor gostar da minha idéia o salário é legal... Nada maravilhoso, mas como eu já ganho quinze na minha repartição no tribunal, tá ótimo. Vou usar esses dois milzinhos só pra sair com as gatas. Mulher me inspira, acho que vou dar uma descida no baixo leblon, quem sabe encontro alguém no BB Lanches. Volto rapidinho e acabo o texto.

Levantou-se com o dobro da fome com que foi dormir. Fome. Sua cabeça doía tanto de fome que nem conseguia pensar direito. Pensava que os clientes daquele restaurante chique, de vitrine longa e macia de penumbra, nunca saberiam o que era a fome. Fome não é apetite, sabia. Apetite é quando se pode comer, a fome não. A fome é negra, e forma uma necrose dentro da gente. Sentir seu estômago colando às paredes, às víceras, ao coração era a fome de verdade. Que injustiça uns se divertirem com a necessidade de outros. Apetite é quando a fome é diversão, pois o que ele sentia não era apetite, era dor. Fome de macho, dizia. Fome de bicho! Acordou e pensou logo porque Deus, ou  a prefeitura não explodiam logo o seu bueiro preferido! Levantou-se bem no momento em que um jovem desavisado dobrava a esquina em sua direção. A rua era escura e livre, pensou. Puxou do bolso a gilette que havia pego num lixo da semana passada. Ia assaltar o sujeito. A fome mata, amigo, e se não te mata, mata outro. Era a vida e não tinha jeito, precisava comer.   

Ai, meu Deus... escapei por pouco. O mendigo tava louco! Ainda bem que eu tinha algum dinheiro pra dar pra ele senão... Esse Rio de Janeiro tá uma merda mesmo! É só a gente sair na rua e é assaltado. Nem consegui fazer um social no baixo... Essa prefeitura não faz nada! Dezenas de bueiros explodindo pela cidade, junto com a fome, a vagabundice dos maltrapilhos, os assaltos, o lixo urbano...quanta miséria pra se escrever. Que susto, cacete! Vamos ver se sai alguma coisa agora nesse texto...já está tarde... Já dizia o poeta: "Barriga cheia é olho fechando."

Não tinha intenção de machucar o passante, mas até o mataria se fosse necessário. Sorte que ele ficou com medo e entregou logo o dinheiro. Nem prestou atenção se o sujeito possuía celular ou outros mimos desnecessários. O que ele precisava mesmo era de dinheiro para comer. Saiu rápido daquela rua, dobrou a esquina e seguiu até à Rio Lisboa à procura de algum pão barato com café e queijo. Ao entrar na padaria sentiu os olhares de reprimenda. A repressão, a exclusão social, o medo, ai...o medo. Vergonha não tinha, tinha medo. Mas no fundo eram a mesma coisa. O medo gerado da exclusão social é cheio de vergonha. Entrou e o seu suor fétido afastou um casal cliente do balcão. Isso fez o gerente se apressar  a expulsá-lo rapidamente, sem querer atendê-lo. O distúrbio causado pela não aceitação de seu dinheiro doeu intensamente, e ele de fora da loja gritou. Gritou como um pássaro dentro de uma gaiola, como um urso faminto porém sem dentes para comer a presa, gritou como a saudade descrita dentro de uma música, e seu ódio coube revertido a si mesmo como se ele fosse realmente o mal - e infelizmente o era. Fugiu como um rato sujo.

Porra! Assim não consigo escrever! Esse pessoal gritando, brigando na rua está me atrapalhando! Vou fechar essa janela e ligar o ar condicionado pra ver se disperso esses barulhos intransigentes. Já são quatro da manhã, daqui há pouco vou virar e não posso. Preciso acabar isto aqui e dormir pelo menos até às nove horas!

Voltou à sua rua e ao seu bueiro preferido. Pensou e deu graças a Deus por ter conseguido comprar um pedaço pequeno de pernil num pé-sujo em outra esquina. Não ia dormir com tanta fome assim. Dia seguinte teria muito trabalho catando latas e papelão - quem sabe não atingiria a meta de uns cinco reais no final do dia! Espalhou sua estopa em cima do bueiro e teve a sensação de que ele estava mais quentinho que antes. "Quem sabe desta noite eu não passo?" E rezou para que o bueiro explodisse e o levasse sem dor. 

De repente ouviu-se um estrondo e alguns passantes puderam ver as chamas subirem a uma altura de alguns metros acima do solo, e a tampa de um bueiro se espatifar contra um muro de concreto. Vinte minutos se passaram até que pudessem ouvir as primeiras sirenes do corpo de bombeiros. E com lágrimas nos olhos, e a boca aberta num choque de angústia ele pensou: "Porque não eu...? Porque não eu....?"





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