sábado, 11 de fevereiro de 2017

Conto Fora de Estação

Quando fui pra guerra eu sabia o que ia encontrar. As pessoas falam... Mas nada do que elas falaram aconteceu do jeito que elas falaram. Eu não tinha família, só uma tia, e a minha tia... ela estava tão orgulhosa de mim... com aquela farda toda engomada, gravata verde, todo arrumado, as lágrimas eram de orgulho não eram de tristeza - o orgulho é sempre a consequência de uma semente de tristeza. 

Quando eu desembarquei do imenso avião nos levaram para um lugar onde não tinha nada, só casinhas pré-fabricadas. Os sujeitos eram camaradas, fiz amigos e perdi todos. 
Saber e entender são coisas bem diferentes. A maioria das pessoas acham que sabem, a minoria sabe, mas tem também a minoria da minoria, e esta entende. Saber é fácil, basta ler, ver no telejornal... entender é viver, só entende quem vive a dor da guerra. Uma coisa que me disseram uma vez durante uma patrulha: "Se todas as pessoas do planetas tivessem ido para a guerra não existiria a guerra." Acho que é o mesmo caso que um vírus, por exemplo: o veneno é o antídoto. Só que neste mundo infernal poucas pessoas na verdade entendem a guerra. A maioria só sabe que existe e que é ruim, reclamam, xingam, choram, gritam, desfazem amizades, mas no fundo não tem menor ideia filha da puta do que é estar numa patrulha e de repente ser atacado e morrer. Dos quinze homens...amigos...que me acompanhavam, quinze morreram. Foi assim que me capturaram.

Fui capturado depois de levar um tiro na perna. Me trancafiaram numa prisão que era como um buraco. Passei dez anos sem ver a luz do Sol. Me torturaram, e eu contei tudo... me fizeram lavagem cerebral e eu esqueci quem era. Quem nesse inferno de merda não esqueceria? Me batiam na cara e depois me davam vodca pra beber, e eu acabei gostando... aceitar é gostar.

Depois de três anos lacrado num cubículo sem luz eu já não era mais um ser humano. Não desejava mais matar ninguém que não fosse eu mesmo, mas minhas mãos presas não me permitiam. Eu cagava aonde dormia. 

Um dia um deles me pegou e me transportou para uma cadeia melhor. Minha cela era branca, relativamente limpa, tinha uma privada, e uma janela por onde entrava luz. Me perguntaram o quê eu queria e eu disse: livros.

Me trouxeram um livro na minha língua, e eu o li em um dia. Depois me trouxeram outro que eu li também em um dia. Depois começaram a trazer mais. E eu só cagava e lia. Traziam de tudo. Filosofia, matemática, romances, bobagens também... de tudo, e eu lia e defecava.

Passei os dois últimos anos de cárcere lendo adoidado! Eu me instruí, li de tudo. Eu li mais do que qualquer letrado de qualquer grande academia. Eu vi e li de tudo, meus amigos! 

Depois de mais três anos no cárcere e tendo lido de tudo foi que eu percebi que na verdade eles não estavam me ajudando em nada, muito pelo contrário. Minha cultura adquirida não servia pra nada enquanto eu estivesse preso. Aqueles filhos da puta me enxeram com um conhecimento que me atormentava. Eles criaram um estorvo dentro de mim. Um bicho, uma pulsação, um monstro que desejava rasgar minha cabeça, meu peito e sair por aí falando, contando... eu precisava dividir, passar o conhecimento...eu transbordava de mim mesmo e isso começou a me tornar mais maluco do que eu já era, pois eu estava preso.

Então comecei a gritar mesmo. Eu berrava que nem um louco, comecei a ter síndromes psiquiátricas muito maiores do que antes quando me encontrava preso sem luz, sem privada, cagando no pé, e bebendo mijo. Eu agora era alvo da pior tortura que um ser humano poderia passar.

Um dia ele entrou na cela e disse que estava na hora de eu me converter. Que se eu me convertesse ele me soltaria e eu lutaria por eles, junto deles, pelo deus deles, e que eu poderia passar o meu conhecimento à frente. Eu não aceitei. Ele saiu e não voltou mais. Foi quando eu decidi me suicidar.

Em algumas semanas ele voltou e perguntou o que eu queria. Eu disse que me converteria caso ele me trouxesse maçãs pra comer de manha e de noite. E assim ele fez. Por meses eu recebi as maças, e de acordo com algo que eu aprendi num livro, eu comia as maçãs mas guardava num canto da cela as sementes. A semente da maça possui cianureto, que é um veneno filho de uma puta. Em quantidade, mata! Depois de seis meses eu já possuía sementes suficientes. Fui engolindo elas uma a uma, mordendo antes pra que fizessem efeito de verdade. 

Acordei um dia numa vala aberta. Não morri. A quantidade só me levou à um estado de coma e não foi o suficiente para me matar. Eu não sabia onde estava, mas vi ao longe um menino. Fui cambaleando até ele e pedi que me trouxesse, um lápis, uma folha, uma maçã e um pote de mel. Na folha eu escrevo esta história. E termino dizendo que a maçã, na minha religião, mesmo contendo cianureto no seu interior, significa o mundo, e que a cobrimos com mel uma vez por ano, e a comemos desejando paz e vida, e assim seguimos felizes com sabedoria e força. Que assim seja!