quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Lixo

A noite é bela. O Osmar não concorda. O coitado, ele passa a noite toda segurando as pálpebras de sono. Deitado no banco de madeira da entrada do prédio, sua coluna deve doer, e ele deve se perguntar à toda hora o porquê de ser pobre. Tenho a certeza de que ele pensa assim toda hora em que algum morador entra no prédio de madrugada. Mesmo assim, duvido que ele saiba o quão é bom ter um quarto numa casa quentinha te esperando da rua. Mas ele deve ter um canto em algum lugar. Todo mundo tem mesmo que nem seja um canto. Já eu contemplo a lua sempre que dá. Geralmente quando o caminhão vira a esquina da praia aí sempre dá mesmo. Eu olho pra ela, ela lá em cima zomba de mim. Tenho certeza que a lua ri de mim. Eu acredito nessas coisas talvez porque a minha vida seja de noite. É na noite que as coisas acontecem. O Osmar diz o contrário, ele diz que de dia a cidade funciona, ela se movimenta, tem vida. Você sabia que tem muito mais rato do que gente na cidade, e que eles acordam à noite? Mas rato não produz nada, só destrói - é  isso que o Osmar fala. Será? Acho os ratos mais civilizados que os homens, esses não valem nada, mas os pobres ratinhos só cuidam de se alimentar, se carregam doenças é por causa do lixo que o homem joga por aí. O Osmar diz que não, ele diz que sem o lixo não haveria os ratos. Porra! Então sou eu que estou certo, é ou não é?

Eu não escolhi essa profissão de catar lixo. Mas não sou catador mendigo não, eu sou empregado público, eu vou no caminhão, eu limpo esses lixos que os ratos adoram. Eu ganho salário! Às vezes quando o caminhão tá na retona indo direto sem parar eu de repente sonho acordado com a realidade que vivo dormindo. Engraçado isso. Eu vivo o sonho que vivo realizando! Não... é por aí. Me confundi agora. Mas de qualquer forma eu gosto da minha profissão de pegar nos sonhos dos outros. Porque lixeiro é isso: a gente recolhe e joga fora os sonhos deixados nas calçadas da cidade. Pense bem: se alguém sonhou comprar um saco de batatinhas fritas, comeu, e jogou fora, aquele saco nada mais é que o que restou do sonho. Sonho também suja, sabia? Sonho não é coisa abstrata não. Sonho deixa marcas, e essas marcas são sempre largadas em algum lugar como restos de algo que foi comido, lido, usado. O lixo é sempre o resíduo esquecido do sonho, e cada sonho tem o seu resíduo que é lixo. Se a gente for pensar assim sonho e lixo são a mesma coisa. Não tem a menor diferença. O Osmar não concorda com isso também. Aquele filho de uma égua não concorda com nada do que eu digo! Mas eu entendo: ele dorme de noite num pedaço de madeira de lei e trabalha de dia. O Osmar não tem canto. Até lixo tem canto, menos o Osmar, coitado...

Daqui a três dias é o aniversário de uma pessoa muito especial. Não vou falar o nome porque pessoas especiais não têm nome, pessoas especiais não precisam de nome. Nome a gente usa pra chamar quem a gente não conhece. Quem a gente conhece bem simplesmente tá lá, pra toda hora, que nem rato, que nem lixo, não tem nome, pra quê... Eu também fico pensando nas estrelas. Esse meu trabalho é pesado, não digo que não. Mas é por isso que eu sou forte e disposto, não frequento academia de ginástica nem essas bobagens dos garotos novos. Eu sou da roça! Criado com inhame e batada-doce; ovo de galinha pega na marra pelo pescoço! Não é qualquer um que faz meu trabalho não! Um colarinhozinho de merda, um político, um playboy não tem calo nas mãos pra isso não. Tem que ser macho! Vai ver é por isso que de vez em quando eu vejo a lua rir com as estrelas. Vou passar agora na frente daquela menina. Que menina linda! Mas ela não olha pra mim. Ninguém olha pra mim, é claro, tá todo mundo dormindo. Ah-ha!!! Te peguei, né? É que a menina fica acordada que nem eu, eu sei, eu já vi a janela dela acesa e ela olhando as árvores lá do quarto andar. Eu gosto dela, sabia? Deve ser porque a menina também curte as estrelas. Ela já me viu muitas vezes junto com a galera coletando o lixo que espalha pela cidade bonita. Eu, ela e o lixo, o Osmar e os sonhos. Todos presos na cidade. Quem será que vai nos coletar um dia?




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