quinta-feira, 26 de junho de 2014

Guerra

Acabava de voltar da guerra. Meu regimento quase não havia sobrado. Passara uns três meses me recuperando numa tenda médica onde perdi metade de uma perna. Dizem que problemas psicológicos doem mais, eu não acho assim. Haviam me dado muletas, uma medalha de ouro, uma carona de avião, uma passagem de trem, uma pensão vitalícia, e o conselho de visitar minha mãe. Não segui o último.

Me encontrava sentado num dos bancos de madeira da estação. Minha vestimenta, uniforme, havia sido lavada e esterelizada, porém ainda rescendia o gosto do sangue espalhado pelo campo de batalha. E, por mais que eu me abstraísse assoviando, o som das cargas de canhão nunca me deixariam em paz, eu sei disso...

Minhas pernas doíam embora só me restasse uma. Acho que chamam isso de efeito "fantasma". (???) Não, não... é outro nome, mas eu não tinha forças. Tudo que eu pensava era confuso. Eu não sabia mais o que devia fazer, nem como iriam me receber. Herói ou pária? Não seriam a mesma coisa? Minha mente ardia, e eu sentia fome. Meu ombro ainda doía, e eu sabia que havia nele um calo marcado das armas que carreguei e das pessoas que matei. Minha vista tremia de nervoso, e meu dedo mínimo estava torto por algum motivo. 

O telefone público que ficava ao lado do banco começou a tocar, e eu juro que naquele momento minha pele congelou e cheguei a puxar minha faca da cintura. Foi quando uma menininha de uns 7 anos me perguntou: 

- O senhor pode segurar meu livro? Está pesado e eu quero brincar na maquina de chiclete. - Não sei oque me deu, mas sei o que respondi.

- Buuuuu! Vá embora, menina, eu sou o demônio!

Ela saiu correndo e eu fiquei feliz. Nunca me senti tão endemoniado na vida, nem durante as chacinas forçadas. Nem quando tive que limpar os sapatos do sargento. Tive a certeza de que o demônio é um ser humilhado. Não que isto o redima, mas quem quer saber? Foda-se!

Deu 10 minutos e a menina voltou e me perguntou. 

- Você não é o demônio, eu não acredito em demônio, o demônio é vermelho e você não é! 

De que adiantava responder? Todos nós somos vermelhos, mas ela não entenderia e eu não estava nem aí. Então ela falou.

- Qual o seu nome? -  E foi aí que meu coração gelou. Eu não lembrava meu nome! 
- Pude apenas dizer o número de minha infantaria...e só.
-  Ela fez um muxoxo e pôs-se a correr. 

Meu trem se aproximava, e eu me levantava com dificuldade. As pernas tortas, quer dizer...a única perna e a muleta. Peguei com meus braços fortes e gastos minha mochila, e me dirigi à porta de entrada. Quando entrava a menina retornou e com um olhar lânguido disse:

- Pode me levar...?
- Porquê? Cade seu pai, menina?
- Não sei, a última vez que vi ele havia ido para longe. 
- E sua mãe, sua avó... não tem ninguém?
- Não sei...faz uns três dias que não encontro....
- Onde você mora, menina?
- Não sei voltar daqui...
- ......
Me olhou com um olhar  de imensidão, e senti na minha pele o pesadelo, o sublime pesadelo... Me deu vontade de estourar meus miolos.
- Desculpe menina, mas não posso te levar. Não sinto nem a minha perna...Adeus. Que o mundo esqueça. Adeus.

E fui tratar da vida.




quarta-feira, 18 de junho de 2014

O Trânsito


Pegou as chaves, a carteira, abriu a porta de casa e saiu pela portaria do prédio. Entrou no carro estacionado uns dez metros do prédio. Deu a partida e foi-se.
O sinal da esquina abriu em uns cinco minutos. Acelerou, dobrou à esquerda, guiou uns trinta metros e parou. O trânsito parecia intenso. Ficou parado, estagnado, por alguns minutos. Finalmente os carros começaram a seguir em frente. Ele precisava chegar no Recreio dos Bandeirantes às oito e meia da noite. Sua pontualidade  incomodava ao mesmo tempo que o orgulhava. Havia uma pessoa esperando, e ela não devia esperar.

Dobrou à Pompeu Loureiro, que fluiu normalmente, e isso o animou. Subiu o corte em direção à Lagoa. As placas de velocidade máxima impostas pelo governo pareciam imbecis - cinquenta quilômetros por hora num trecho praticamente expresso era a quintessência da ganância do Estado. 

Desceu o corte, completou a grande curva, subiu o viaduto e caiu no maior engarrafamento impossível de prever. Carros se amontoavam de forma caótica entre as linhas do trânsito, e as marcações das pistas já não faziam o menor sentido dentro daquela anarquia automobilística. Era tudo a síntese de um movimento educado ao avesso que representava um viver sem lógica, o existir sem leis dentro de regras criadas pelos desgovernados e sua educação mesquinha, unilateral, egoísta e de certa forma altruísta. O Estado quando não age impõe as regras básicas da sobrevivência, e ele não estava pronto para isso. Nem ele nem ninguém. Tratou de se embrenhar no caos e em segundos era mais uma peça do imenso jogo de xadrez alucinado das ruas do Rio de Janeiro.

Nessas horas a primeira coisa que se faz é olhar o relógio. Então se descobre que o tempo passa independente do trânsito, e isso o impingiu uma certa consciência de mortalidade, que o incomodou agudamente. É no nó do trânsito que grandes músicas são criadas, grandes poemas esquecidos, e grandes amores lembrados. Nessas horas vivemos a estagnação, e presenciamos a velhice e a incapacidade. Entrou em desespero médio, e isso o fez cortar alguns carros, ouvir xingamentos, lidar com taxistas ineptos e fora da ordem, ônibus como elefantes, e carros da polícia cujas luzes ardem aos olhos. 

Num andamento de trinta minutos conseguiu finalmente chegar ao fim da Lagoa bem no ponto onde dobraria em direção à Gávea, onde sabia que o trânsito estaria provavelmente pior. Nessas horas a esperança bate como um vácuo no caminho, e realmente ele acreditou que seria homenageado. Mas, não. O cruzamento desprovido de guardas de verdade era gerido por fantoches vestidos em  trajes fosforescentes, colocados ali apenas para preencher vagas de empregos desprovidos de vagas reais. Ou seja, pensou ele que Emprego é algo muito diferente de Trabalho. E pensou ele na quantidade de pessoas que acham que exercem um trabalho, mas que na verdade apenas dividem um emprego com milhões, se julgam especiais e se consideram protegidos, mas que na verdade vivem a ilusão do espaço, assim como o trânsito, o engarrafamento de funções transforma um lugar numa imensa hipocrisia.




Dentro do Túnel Dois Irmãos (que leva à São Conrado, que fica antes da Barra, que fica antes do Recreio) seu tempo já havia praticamente se esgotado, e com certeza chegaria bem atrasado. E para seu desespero o túnel estava invariavelmente constipado, como um cu cheio de merda. Sua cabeça já doía, e o pânico já não era juvenil e sim patológico. Foi tomado por uma paúra que quase o fez andar à pé, abandonar tudo e se tornar escravo da liberdade. Palavras educadas eram medidas e se transformaram nos maiores xingamentos já proferidos à raça humana. 

Finalmente fora do túnel o pânico passou, e num lapso de espaço acelerou como se quisesse chegar ao céu antes da hora. Corto uns quatro carros pelo lado direito da pista e emborcou pelo lado de baixo da via onde quebra-molas bem escondidos o aguardaram para foder seus pneus.

Conseguiu galgar algumas dezenas de metros e logo se viu afunilado pela inteligência arrogante do urbanista filho-de-uma-puta que traçou aquela reta oblíqua. Sua cara já não servia a um encontro, seja qual fosse a natureza dele. Pois mais um túnel surgiu, e ele teve que degladiar contra seus concidadãos competidores - carros - todos mal-educados, vertidos à mais pura segregação modelística, e faróis que se emitissem lasers destruiriam uns aos outros.

Enfim na Barra da Tijuca! Olhou o sinal vermelho, recebeu uma ligação chata perguntando onde ele estava. Tinha cinco para chegar ao fim do Recreio dos Bandeirantes - meta impossível de cumprir. Como o mundo é uma bosta, como o governo é uma merda, como o meu encontro é chato, nada vale tanto esforço! 

Embicou na entrada de um shopping center bem grande, pegou o cartão do estacionamento e cuspiu na máquina que lhe dava as boas vindas. Estacionou no G-5, reclinou o banco, tocou uma punheta, e foi levado a outra dimensão.