domingo, 5 de janeiro de 2014

Ratos

Ratos! Ratos é o que subsiste neste bairro. O resto perece assistindo aos ratos. Os lixos empilhados são montanhas intransponíveis, eles assistem meus devaneios. Quando faço a perigosa travessia entre minha porta e a do supermercado notívago. Passo pelas rua e festejo. A cada rato que vejo - um ser humano. Tenho a certeza de que vejo pelo menos uns dez, se eu realmente prestar atenção - durante uns vinte minutos. Às vezes levo minha câmera fotográfica para tirar fotos dos meus vizinhos de subsolo. Subsolo? Já estão acima há muito tempo, e cada vez mais. Não trazem mais a peste negra, mas trazem a negra peste. Monstros do "crack", dragões dos farelos, seu mijo queima, seu ar inebria e confunde. Era o bairro mal-cheiroso desde quando? Entre as pilhas de lixo ratos buscam artefatos. Na busca do pão-morto perscrutam seus sonhos inexistentes, seus olhares mofados, suas peles de fungos, seus olhos de rapina, e seus narizes platinados, muitas vezes adornados de piercings, sabe-se lá como.

De repente sou puxado pelo braço. Um velho de mil anos me pergunta numa língua estranha, inexistente, onde fica a praia. Embarco em seus olhos de cor fétida, castanha - mais de sujeira que de real cor - e me invade um sonho. Minto! Eu invado o sonho. Não há quem consiga viver esta vida sem se evadir em sonhos. Não há que consiga atravessar o deserto da noite de copacabana sem se sentir beduíno. Somos orelhões falantes, somos cigarros pisados, somos restos da calçada. Nossa pele vai se metamorfoseando em pedra, em pixe, em betume, e nossos corações amalgamados já possuem a paupérrima cor dos muros cor de ratos.

O velho me segue. Acho que ele acha que nada possui. Está certo. Entra no supermercado comigo. O segurança nem liga. Ele é feito da mesma massa atômica, do mesmo carvão que um dia há de queimar nossos narizes e cerebelos disformes pela cidade. O velho me pergunta o quê é aquele queijo - e aponta para um canto. É um queijo fedorento, responde. Caro!, ele diz. É feito de lixo? Penso nos ratos. Com certeza contribuíram muito para essa combinação francesa. Porém nada pode negar a penicilina. Engraçado, penso eu.  O velho abre o queijo e o devora. O segurança nem aí. Eu fujo.

Volto para  casa seguindo meu caminho. Um viciado em drogas me aborda. Ele quer comer. Eu nego dinheiro para craqueiro. Ele pergunta se posso entrar naquele boteco 24 horas e comprá-lo um "algo". Sim. Peço para me seguir. Ele avista um "casal" de policiais fazendo seu "recolhimento" noturno diário no estabelecimento. O drogado estremece. Tem medo de ser subjugado como um rato. Mas quem são os ratos na verdade? - penso eu. Sou duro, forte, deixo claro que comigo ele pode entrar no lugar, mesmo com polícia ou o caralho à quatro. Ele confia. Esse talvez seja o único benefício do crack, te faz confiar no próximo, o quê na verdade não considero um grande benefício. A polícia me cumprimenta. Sinto respeito vindo deles. Não sei o porquê - não carrego armas comigo. Mas meu olhar de rato os indentifica, será? O craqueiro quer comer. Esta suando de fome. Sua baba é bovina. Seu olhar é feito de luar. Prestando bem atenção sua pele é incolor, sua barba de plástico. Sugiro a ele um sanduíche de presunto com bastante queijo e tomate. Sugiro duas vezes. Sua experiência me mata - ele escolhe uma torta bem calórica. Sabe melhor do que eu a fome de amanhã, e pouco liga para o colesterol. Acho justo, e era até mais barato. Come como um rato faminto. São todos famintos, A polícia observa mas nada faz. Eu estou ali, com minha cara de filho de coronel. 

Sigo meu caminho, quase abraço uma puta, mas me dá nojo. Como é dolorosa a solidão dos ratos.





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