domingo, 25 de agosto de 2013

Interstícios

Quando soube que os bueiros da cidade estavam explodindo tratou logo de colocar seus trapos em cima de um e se aconchegar gostoso. Era da rua, nascido da rua, vivido da rua. Zanzava pela cidade debaixo de sol ou frio, em busca de lixo. Não tinha acesso a lugares privados, por isso comia pior que as baratas, e já possuía idade suficiente para querer morrer. Por isso se aconchegou em cima de um bueiro e pensou que, quem sabe algum não explodiria por baixo dele durante seu sono. Seria uma morte súbita, assim como a vida.

Putz... e agora?  Ficou legal, acho. Será que está no nível? Será que o editor vai gostar? Não posso perder essa chance de jeito nenhum. Essa angústia me perturba a mente. Vou lá na cozinha comer alguma coisa e continuar. Preciso entregar esse texto amanhã... Não posso perder essa chance de jeito nenhum!

Não tinha nada a perder, pensava. Já vivera o suficiente, e era como se nada houvesse vivido. Passava por alguma rua chique do leblon e desacelerava o passo quando via a vitrine daquele restaurante maravilhoso. A gente fina comendo bem, se deliciando com coisas as quais ele nem sabia o que eram. Imaginava o que seria aquele creme branco com um montinho preto em cima que derretia. Sabia que derretia por que desacelerava o passo quando passava pela vitrine, e assim podia ver melhor. Passava com vergonha, constrangido, mas uma estrela de felicidade brotava em seu coração só pelo fato de estar perto, de ser vislumbrado por algum cliente da casa. Sentia-se participante do jantar, mesmo sabendo que não era nada, não significava, não pertencia, e a vida para ele não possuía nenhum significado por ser assim, tão gélida para uns e tão calorosa para com outros. Mas se contentava com seu pedaço de pão recém achado no lixo da esquina, e quando o comia devorava sem a finesse que via, mas sentia o gosto da lagosta desconhecida do restaurante fino. 

Pronto! Acho que essa boquinha boa vai me dar alguma inspiração. Adoro sanduíche de lagosta do almoço com mostarda da noite. Bom demais! Era do almoço...mas tudo bem. Lagosta não pode ficar muito tempo na geladeira que estraga fácil, é bom comer logo. E tava boa que dói. Agora de volta ao papel!

Deitou-se sobre o bueiro de novo. Havia um bem legal em copacabana. Era grande e não era frio como os outros - bom indicador de que poderia explodir, quem sabe... Queria uma morte limpa, rápida, se possível que nem sobrasse seu corpo! Já morreria cremado, ótimo! Menos trabalho para a sociedade. Já vivera muito, pensava. Já passara por tudo de ruim que se podia imaginar, e mesmo assim nunca provara aquele creme com o negócio preto que derretia no meio. Que vida injusta era essa. Vida de cela, de gaiola, de sofrimento e penúria. Esperava pelo bueiro simplesmente porque não queria tirar sua vida. Pensava que se nada havia ganho da vida, então que pelo menos ela o tirasse dela. Era sua filosofia não se matar. Na verdade tinha medo.  Melhor morrer sem saber.

Bom, o texto tá fluindo. Ainda bem que é um teste apenas, não preciso escrever mais que umas duas laudas, ótimo! Se o editor gostar da minha idéia o salário é legal... Nada maravilhoso, mas como eu já ganho quinze na minha repartição no tribunal, tá ótimo. Vou usar esses dois milzinhos só pra sair com as gatas. Mulher me inspira, acho que vou dar uma descida no baixo leblon, quem sabe encontro alguém no BB Lanches. Volto rapidinho e acabo o texto.

Levantou-se com o dobro da fome com que foi dormir. Fome. Sua cabeça doía tanto de fome que nem conseguia pensar direito. Pensava que os clientes daquele restaurante chique, de vitrine longa e macia de penumbra, nunca saberiam o que era a fome. Fome não é apetite, sabia. Apetite é quando se pode comer, a fome não. A fome é negra, e forma uma necrose dentro da gente. Sentir seu estômago colando às paredes, às víceras, ao coração era a fome de verdade. Que injustiça uns se divertirem com a necessidade de outros. Apetite é quando a fome é diversão, pois o que ele sentia não era apetite, era dor. Fome de macho, dizia. Fome de bicho! Acordou e pensou logo porque Deus, ou  a prefeitura não explodiam logo o seu bueiro preferido! Levantou-se bem no momento em que um jovem desavisado dobrava a esquina em sua direção. A rua era escura e livre, pensou. Puxou do bolso a gilette que havia pego num lixo da semana passada. Ia assaltar o sujeito. A fome mata, amigo, e se não te mata, mata outro. Era a vida e não tinha jeito, precisava comer.   

Ai, meu Deus... escapei por pouco. O mendigo tava louco! Ainda bem que eu tinha algum dinheiro pra dar pra ele senão... Esse Rio de Janeiro tá uma merda mesmo! É só a gente sair na rua e é assaltado. Nem consegui fazer um social no baixo... Essa prefeitura não faz nada! Dezenas de bueiros explodindo pela cidade, junto com a fome, a vagabundice dos maltrapilhos, os assaltos, o lixo urbano...quanta miséria pra se escrever. Que susto, cacete! Vamos ver se sai alguma coisa agora nesse texto...já está tarde... Já dizia o poeta: "Barriga cheia é olho fechando."

Não tinha intenção de machucar o passante, mas até o mataria se fosse necessário. Sorte que ele ficou com medo e entregou logo o dinheiro. Nem prestou atenção se o sujeito possuía celular ou outros mimos desnecessários. O que ele precisava mesmo era de dinheiro para comer. Saiu rápido daquela rua, dobrou a esquina e seguiu até à Rio Lisboa à procura de algum pão barato com café e queijo. Ao entrar na padaria sentiu os olhares de reprimenda. A repressão, a exclusão social, o medo, ai...o medo. Vergonha não tinha, tinha medo. Mas no fundo eram a mesma coisa. O medo gerado da exclusão social é cheio de vergonha. Entrou e o seu suor fétido afastou um casal cliente do balcão. Isso fez o gerente se apressar  a expulsá-lo rapidamente, sem querer atendê-lo. O distúrbio causado pela não aceitação de seu dinheiro doeu intensamente, e ele de fora da loja gritou. Gritou como um pássaro dentro de uma gaiola, como um urso faminto porém sem dentes para comer a presa, gritou como a saudade descrita dentro de uma música, e seu ódio coube revertido a si mesmo como se ele fosse realmente o mal - e infelizmente o era. Fugiu como um rato sujo.

Porra! Assim não consigo escrever! Esse pessoal gritando, brigando na rua está me atrapalhando! Vou fechar essa janela e ligar o ar condicionado pra ver se disperso esses barulhos intransigentes. Já são quatro da manhã, daqui há pouco vou virar e não posso. Preciso acabar isto aqui e dormir pelo menos até às nove horas!

Voltou à sua rua e ao seu bueiro preferido. Pensou e deu graças a Deus por ter conseguido comprar um pedaço pequeno de pernil num pé-sujo em outra esquina. Não ia dormir com tanta fome assim. Dia seguinte teria muito trabalho catando latas e papelão - quem sabe não atingiria a meta de uns cinco reais no final do dia! Espalhou sua estopa em cima do bueiro e teve a sensação de que ele estava mais quentinho que antes. "Quem sabe desta noite eu não passo?" E rezou para que o bueiro explodisse e o levasse sem dor. 

De repente ouviu-se um estrondo e alguns passantes puderam ver as chamas subirem a uma altura de alguns metros acima do solo, e a tampa de um bueiro se espatifar contra um muro de concreto. Vinte minutos se passaram até que pudessem ouvir as primeiras sirenes do corpo de bombeiros. E com lágrimas nos olhos, e a boca aberta num choque de angústia ele pensou: "Porque não eu...? Porque não eu....?"





sábado, 24 de agosto de 2013

A Vida Muda A Cada Três Meses.

Naquela cidadezinha do sul desembarcava o último homem sobrevivente da guerra. Seu uniforme já não era verde de tão sujo, suas botas já não eram polidas, assim como o seu olhar. Foi condecorado com alguma ordem das armas, e seu fuzil lustrado por alguma mulher sem nome e endereço certo. Saltou do trem e procurou em algum "brownstone" da estação o que poderia ser uma indicação. Não se lembrou da estação embora tenha passado parte de sua vida mascando tabaco sentado na linha do trem. Os guardas vinham puxá-lo pela gola, arrastá-lo para longe, pedir seu ticket. Agora era ele que possuía o poder de puxar alguém pela gola. Poder concedido pela poeira de outro lugar bem diferente da estação.

Passou uns dez minutos andando sistematicamente pela estação inteira, para oeste e para leste, para leste  e para oeste, até perceber que ela acabava ao fim de poucos metros. Era uma estação de cidade pequena, onde se podia sentir o perfume de frango com ovos e farinha, e onde se podia passar horas admirando o vestido das mulheres, imaginando suas pernas como seriam. Pensou que o mundo seria bem melhor se ficasse só na imaginação.

Por fim, recostou-se o ombro num pilar que sustentava a velha cobertura de telhas falsificadas, pré-fabricadas e sujas que tanto caracterizava a construção da velha estação. E pensou que aquilo era seu lar, embora não tivesse mais lar, ou pelo menos sentia que o conceito de lar não existia realmente, e realmente não sentia naquilo seu lar. Uma lágrima então escorreu pelo se único olho ainda remanescente da guerra, e colocou a mão em cima da cicratiz que havia rendido sua condecoração afinal. Entrou num transe meditativo só conseguido com muito esforço por ioguis com experiência. Ele não precisava desse treinamento, a guerra havia limpado seu cérebro de todo o mal. O sofrimento gera exaustão e a exaustão gera plenitude, coisas paradoxais e inexplicáveis de nossa mente.

O tempo era como um coração, e batia calmamente, sem pressa, lentamente, como que não pudesse ser mais gasto. De repente viu parada ao longe, do outro lado da estação uma menina. Era sua filha. Não estava realmente tão longe assim, mas às suas vistas parecia que estava bem do outro lado. A menina estava sentada num canto perto de um baleiro antigo repleto de balas a um vintém cada. Estendia a mão e de vez em quando recebia uma moedinha das pequenas. Era uma menina linda, de olhos atentos, cabelo louro e liso e sujo de poeira. Ela não o virá até então. Mas algo no universo a fez girar a cabeça em sua direção e seus olhos foram de encontro ao dele. O coração do homem disparou, e isso o fez lembrar o último bombardeio em que escondido debaixo de um dólmen conseguira agarrar sua vida. Pensou como pode ser engraçado a felicidade fazer bater um coração tão fortemente como a tristeza. Intuiu então o quão ignorante era o seu coração. Pelo menos o dele.

Pois que seu coração dobrou os batimentos quando conseguiu enxergar que a menina havia se levantado, e o olhava com desconfiança e dúvida. Essa dúvida que restou por apenas um breve minuto pareceu ser uma eternidade. Mas depois deste tempo, breve e simples, ela voltou a sentar-se no chão frio e a pedir vinténs aos passantes.

Ele então entrou no bar, fez como que fosse pedir algo, mas lembrou-se... Saiu então aflito, e rodou pelo diâmetro curto em que se encontrava umas cem vezes, pasmo, e sem saber o que fazer, até que num determinado momento percebeu que era um major condecorado, e se isso  podia ser vergonhoso para ele, também lhe colocava numa posição de comando maior que qualquer remédio para dor de cabeça existente no mercado.

Deu um passo em direção à menina e parou. Deu outro passo, e sistematicamente foi aumentando os passos em direção a ela. Seu andar possuía o cacoete das marchas beligerantes.Chegou há um metro dela e não soube o que falar. Tanto que apenas ocorreu tirar um vintém do bolso e atira-lo delicadamente no chapéu exposto ao chão. Titubeou, deu de costas, virou-se de novo. Seu cérebro não funcionava direito. Sua língua estava seca e incapaz de ajudar a  proferir qualquer som inteligível. Então gemeu. Há muito não gemia, desde a bala que havia perfurado seu ombro durante um ataque inimigo. Não conseguiu reconhecer a alma deste gemido, se era de amor, de saudades, ou de bala de revólver.

Foi então que a menina falou: - Oi pai... - E pôde apenas dizer  o que lhe ocorreu na hora, sem moral, sem amor, sem absolutamente nada além do que havia aprendido em quatro anos de batalha contra os "filhos da puta" dos nazistas.

- Ethel...vamos tomar um uísque no bar? Faz tanto tempo que não te dou um refrigerante... sei que uísque é muito para uma menina de... (não conseguia lembra o número de sua tenra idade) ... mas eu pelo menos preciso de um. - A menina foi se levantando contra a parede, cansada e debilitada: - Tudo bem pai, uísque é o que eu tenho tomado mesmo.

Entraram no bar, que estava cheio, mas não lotado. Sentaram-se no balcão e ele pediu dois uísques. O barman pediu a carteira de identidade da menina, embora já a conhecesse da dureza da vida dos que frequentam a estação sem embarcar. Ao olhar o homem que a seguia fingiu não conhecê-la. Mas impediu-a de beber uísque. O pai então disse que ela estava acompanhada, que ele era seu pai, e major do exército, e que apenas a ele cabia a sua educação, e que portanto enchesse um copo de uísque sem gelo para ela e um para ele, e rápido! Foi plenamente atendido.

A menina perguntou-lhe o porquê do olho vazado, e o encheu de perguntas sobre a guerra, sobre sua vida, etc. Ele não pôde, se bem que tentasse, respondê-la. A única coisa que saiu de sua boca foi esta frase: "A vida muda a cada três meses."

Os dois beberam vários copos e quando sentiram que não podiam mais  dirigiram-se ao local onde ela costumava "trabalhar" como pedinte. Quando lá chegaram não havia mais ninguém na estação. A noite caíra no mundo como a bebída em suas cabeças. 

Sentaram-se então no chão, encostados na parede de tijolinhos, parecidos com os que foram usados para queimar judeus nos campos. Só que agora eram tijolos britânicos, e o cheiro da relva não continha mais o ocre do sangue semi-coagulado. Ele perguntou a ela por onde andava Brownie, seu antigo cachorro de estimação. Ela respondeu que ele estava velho porém vivo e ainda rosnando à toa. Então os dois finalmente se abraçaram e dormiram. Foi só então que a guerra acabou.



quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A Pescaria

Saiu para pescar com a família. Eram cinco apenas: seu irmão, sua mulher, seus dois filhos e ele. Ah, claro! Tinha também o cachorro que se chamava Bumerangue e sempre os acompanhava. Marcaram todos de se levantar às cinco da matina, pois peixe fresco se pega cedinho, com o Sol raiando. O despertador tocou e foram todos acordando e lavando o sono de suas faces, cada um de cada vez. Vestiram-se cada um de cada vez, e tomaram o café da manhã, cada um de cada vez. A casa era pequena e o pouco espaço na cozinha apenas permitia que se cortasse o pão e o queijo cada um de cada vez. 

O irmão não participou desse ritual, embora fosse o mais ritualista de todos. Sozinho na vida desde moleque, chegou sozinho, e bateu sozinho na porta feita de compensado antigo e manchado por mãos e dedos e cabeças. Esse irmão era misterioso e acreditava em muitas coisas diferentes e incógnitas, que ele escondia por trás de um sorriso mudo e inescrutável. Diziam dele que a Lua o seguia, e que o Sol não o batia, e que os peixes o amavam. Vai ver por isso ele pescava tanto, sempre sozinho. Entendia tudo de linha, de chumbo, de carretéis e anzóis encastoados. Por isso só se alimentava de peixinhos. Era esquisito e nunca agarrava os grandes, pois dizia que peixe grande dava varizes nas articulações, além de estragar os molinetes. Mas era tido como pessoa boa, sem maldade, e que cria na alma dos grandes bagres. Muitas vezes havia sumido mar adentro com sua canoa de madeira  boa. E em noites de tempestade quando já era dado como morto aparecia com algum peixe na mão, porta adentro quase arrancada por um chute seu, o sorriso alegre o entregava, apesar de ser um sorriso mudo.

Carregando uma grande caixa de isopôr e uma pequena caixa de pesca, entraram todos no pequeno carrinho azul que os levaria ao pontal de uma praia vazia e limpa. A viagem se deu em duas horas e quando ali chegaram foi realmente um alívio para as crianças e para Bumerangue. Este era malhado, completamente cinza com manchas amareladas. Parecia até pele de peixe, já que pêlo não tinha muito. cachorro velho e experiente sabia o segredo da vida e por isso dormia pouco, por incrível que isso possa parecer. 

Dos filhos e seus pais, especialmente dele, que foi mentor e idealizador desta pescaria, nada se tem a conversar, pois que eram apenas figuras normais e simples, que não acrescentariam nada a uma festa, por exemplo. Seu grande movimento havia apenas acontecido naquele dia.

Varas prontas, íscas preparadas, cada um lançou ao mar, do pier onde estavam, o seu montante de sardinha no anzol. E esperaram. Horas se passaram e nada de algum peixe morder alguma isca. Nem mesmo o irmão conseguira algo, porém seu sorriso nunca desaparecia, pálido e escovado. Seus olhos pareciam brindar.

O primeiro a sumir foi Bumerangue. Mas isso ninguém notou. O segundo a sumir foi uma das crianças, logo seguida pela outra. E já subia a Lua ao céu quando a mulher também sumiu. Logo começou uma chuva fina, e o dono da pescaria, de repente, não se via mais lá. Quando a chuva apertou a maré subiu até o seu ponto culminante. Mas nesse momento o irmão também já havia sumido. Os apetrechos de pesca se encontravam delicadamente bem guardados na caixa de pesca. O carro continuava parado onde havia sido estacionado, como se nada houvesse realmente mudado no mundo, ou na vida da nova manhã que chegava. Se alguém pudesse passar por aquele lugar no determinado momento notaria cinco novos peixes singrando afoitos à direção do horizonte.




sábado, 10 de agosto de 2013

Just a Girl

What is this most beautiful woman
that when it is sunlight
and that when it leaves the breeze
perfuming the night
as perfumes the day.
What is this woman who falls
the eternal folly of not loving
loving everything she creates.
And that crams the frame
and stirs the inks of life
and hiding in painting
of their flesh wound.
Blonde, sun and vanity
Actress of my fantasy
Real woman
but just a girl



terça-feira, 6 de agosto de 2013

O Muro

Olhava para o céu estrelado e pensava: quantas estrelas olham para mim? Olhava para o Sol e sua pele ardia e pensava: é preciso arder para viver? Olhava para o chão e perguntava: quantas milhas hão de comer meus sapatos? Olhava para seu reflexo no espelho e não via nada demais, e se perguntava: porquê?

De repente o prédio ao lado desmoronou. Sim! Caiu do nada, sem aviso prévio, sem porquê. Apenas desmoronou, e matou umas dezenas de pessoas. Saiu correndo pelas ruas aturdido e pensando em fugir da poeira e do caos que se formara, e correu muito até chegar numa pedra que ficava num cais cheio de barcos ancorados à espera, precavidos contra a tempestade que um dia poderia atacar. 

Não. De que me valem âncoras se posso afundar a qualquer momento? De que valem as estrelas do céu se existem nuvens que podem tapá-las. Assim nunca chegarei ao meu Eldorado. Nunca vou saber o além Finistère, onde possivelmente terei paz de espírito, sozinho, livre das prisões, solto às marés da lua.

Um dedo cutucou-lhe o ombro dolorido. Era um mendigo. Fumava um cigarro idiota, e baforava ao vento círculos como planetas redondos. Disse: - A paz não existe, amigo, ela está no sofrimento dos outros. Veja bem, você é infeliz, mas é feliz por não ter morrido dentro daquele prédio que caiu, e por isso tem paz. A paz não existe, ela só existe aos olhos de quem sobrevive às quedas da vida.

E o amor? - perguntou ao mendigo. O amor? Seguiu-se uma risada cheia de pigarro e com cheiro de atum. O amor é um senhor de idade. O amor não existe, o que existe é a compaixão que sentimos um pelo outro. Só sentimos amor quando nos relacionamos, e nossa relação está inevitavelmente ligada a empatia que sentimos diante do sofrimento do outro. Então só há o amor quando não há paz? Sim! - disse o velho lobo do mar. Você só sentirá amor pelos que morreram no prédio à medida que há a chance de você estar suscetível a que o seu prédio caia também. Mas meu prédio é novo, de última geração, não pode cair, aquele era um prédio velho, sem nem uma reforma. Então disse o velho: - Nunca se sabe...Nunca se sabe... E riu sua risada de mar.

Seguiu pela rua costeira como quem seguia a lua. Há que haver um amor puro! Há que haver o amor sem contágio, sem troca, incondicional! Pensei então no amor filial, e isso me deu felicidade. Esse amor só se tem uma vez na vida, e mesmo assim, nem sempre. Mas há, e redime tudo. Velho bobão, deve ter sido gerado no cais do porto!

Foi cutucado de novo, nas costas. E quando se virou viu que era uma folha que caíra de uma árvore ao vento. É... o amor existe, pois quando meus pensamentos afloram negativamente há uma folha que me acaricia os ombros, e isso me tira todos os pensamentos ruins. 

Neste momento ouviu uma risada. E sentada num meio fio uma velha senhora maltrapilha e louca lhe dizia: - O amor, meu rapaz, é cego. Não há pensamento nele, há apenas a inquietude, e um cordão umbilical. Veja bem: uma mãe sofre tanto para dar a luz que não há outra maneira de amar o filho sem que haja este sofrimento inicial. Só quem sofre ama. Só quem sente na pele a mesma coisa que o ser amado pode sentir amor. É a necessidade de proteção que gera o amor, e essa necessidade vem da compaixão, e compaixão nada mais é do que a empatia entre sofrimentos e pessoas sofridas. Você pode ser amado por um bosta apenas pelo fato dele ter sofrido algo semelhante a ti, assim como pode ser amado por uma mãe bondosa e carinhosa. Perguntou então o homem: - Mas há mães que deram a luz e mesmo assim renegaram seus filhos à sarjeta. E recebeu, de bate pronto a resposta vulgar: - Essas são como eu, amigo. Só lhes resta o meio fio, e sendo essa nossa referência será o que dedicaremos aos nossos próprios, uma compaixão errada, maltrapilha, sujismunda, esgotada no esgoto da cidade. E disse-lhe mais: - Não parece ser seu caso. Procure uma esquina, elas sempre funcionam.

O homem então virou uma esquina e deu de cara com um antigo amigo seu. E depois de muita conversa viu que eram compatíveis pois que este possuía o que ele não tinha, e vice-versa. E seguiram andando em direção do Sol, que alguma hora se revelaria ao horizonte. Deve haver amor nas amizades. Porém não há salvação. Pois o que é o amor sem doação, visto que é fome? E às vezes é preciso mais que palavras, mas o mundo é assim mesmo, pensou. O que se há de fazer...

Se separaram e o nosso protagonista andou, andou e andou até que chegou num muro que determinava o final da linha. Parou, coçou a cabeça e pensou. Pensou tanto que quase voltou atrás a refazer seu caminho de ida. Foi quando viu uma enchada bem grande e forte. Pegou-a e derrubou o muro. Cansado, dormiu. Ao acordar se deparou com mais um caminho a frente a seguir. Seguiu, e já era Sol. 







sábado, 3 de agosto de 2013

Esc.

Como o mundo mudou...! Ontem meus amigos eram pessoas que eu encontrava, que eu conhecia, tinha referências sólidas, me ligavam, e batiam, vez em quando, em minha porta. Hoje meus amigos mais presentes são pessoas que muitas vezes nunca encontrei. Dizem quem isso é a era da super-informação. Eu acho que é a era da solidão.

Uma vez fui criança, e criança só se é uma vez. E eu tive um balão vermelho que se despregou das minhas mãozinhas e foi na direção do vento. Pois quando eu me vi, eu era o balão, e viajava ao sabor das marés celestes. Voava alto, muito alto, porém minha visão não enxergava o que era realmente de fato a realidade. Alguns chamam isso de inconsequência, de sonhos até. Eu acho que era vertigem.

Hoje parece que colaram as solas dos meus sapatos com Super-Bonder. Não tenho mais a possibilidade de poder ver o mundo de cima, de uma perspectiva total. Porém, do chão, consigo enxergá-lo com mais ciência. Talvez estivessem certos os céticos de minha existência.  Não era vertigem, era sonho.

Mas era boa e triste a vida com sonhos. Pelo menos era colorida e o tempo escorria pelo meu corpo todo, e não apenas pelas minhas mãos. Fico pensando nisso, e chego à conclusão de que estou errado, mais uma vez errado. Isso não é sonho, é vertigem. Não era boa minha vida, era triste. Meus amigos batiam na minha porta de madeira de lei, cortada de uma árvore chamada Solidão.

Tem um momento na vida em que a gente percebe que o mais importante não é a corda onde nos equilibramos, mas sim a rede que nos amparará quando caírmos. E outro momento em que a rede é nosso empecílho, nossa vergonha até. Queremos e ousamos cruzar os céus sem qualquer forma de segurança. E existe ainda outro momento em que percebemos que não existe a corda, apenas a rede de proteção, e rezamos para que ela nos segure, mesmo!

Quando eu era criança,  e o meu balão vermelho voou, eu comprei outro. Outras vezes, ganhei balas para compensar a perda. Mas uma vez ele ficou preso no topo de uma árvore, e aí eu descobri o melhor objeto de todos, que nos faz realmente voar, e nos trás de volta ao chão, salvos e seguros. 

Eu chamo de escada.