segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Eira nem Beira

Toda primavera Greg soltava os cavalos à tarde para que pastassem e passassem as noites livres. Isso acontecia nas campinas a dois mil metros de altura, nas Rochosas de Wyoming. No inverno a temperatura podia cair até uns quarenta graus celsius abaixo de zero. Na primavera a temperatura mais amena chamava as almas, e Greg gostava de ouvir, no som dos cascos dos cavalos em carreira, o som de sua infância. Um dia soltou todos os cavalos como de costume. No outro dia um deles não voltou. Deve ter ido para Nova York.

As coisas são engraçadas, e assim é o ser humano. Invertido em si mesmo, construiu tudo que possui sem perceber que iam durar bem mais. Eu, por exemplo, tenho um violão construído depois que eu nasci. Quinze anos depois que eu nasci, para ser preciso. Hoje possui, segundo um amigo meu - grande consertador de violões - a metade do que é necessário para que seja um bom violão. Quando for um ótimo violão eu estarei com uns sessenta anos. E um dia vou embora, mas meu violão vai ficar cada vez mais maravilhoso. Não sei se sozinho, ou nas mãos de qualquer um. Sabe-se lá o destino das coisas, mas com certeza vai durar mais do que eu. Da mesma forma durarão as geladeiras, os carros, os aviões, as ruas, as cidades... Que tudo isso, mesmo obsoleto um dia, há de durar mais que a fécula humana. E isso me leva a crer que na verdade não criamos cavalos para cavalgarmos neles, e sim para que eles nos cavalguem. É assim com meu violão, bem como com o velho e enrugado Mustang de Greg. Pois que o Homem nada pedala, e é sim pedalado pelas bicicletas que constrói. Na verdade, sob este prisma, pertencemos às coisas, e a nada elas pertencem por muito tempo. Flautas doces são doces e eternas.

Diz-se "sem eira nem beira" a um indivíduo qualquer, sem proteção, sem ter onde se alojar, sem dinheiro. Quase ninguém sabe o que significa "eira" nem "beira" na língua portuguesa. Eira e beira são os detalhes das bordas dos antigos telhados construídos no estilo português "colonial" para nós, precedente pra eles. Mas só os ricos podiam ter telhados com eiras e beiras. Greg, assim como eu, não possuímos nem eira nem beira. Não a aristocrática pelo menos. Associada, na maioria das vezes, ao jeito de ser do indivíduo, têm muito mais a ver com possibilidades financeiras. Porém o tempo, que tudo dilui, transformou numa coisa menos econômica e mais psicológica. Deve ter a ver com a analogia entre mente (cabeça - nossa ponta de cima, nossa beirada e testa) e telhado (fronte da casa). As eiras e beiras vão durar bem mais que seus construtores. Mas Greg e eu vivemos sem isso.

Tem gente que mora longe, tão longe, que acha que está longe.




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