sábado, 31 de março de 2012

Cavalo de Troia

Cavalos são seres generosos e muito inteligentes. Esta estória me foi contada por uma amiga austríaca, que adora cavalos e que sabe bem das suas veleidades.

Imagine um cavalo negro, daqueles europeus, de raça pura, crina boa pra Stradivarius, lustroso e majestoso, com personalidade forte, músculos definidos e inteligência de personalidade fortíssima, ao mesmo tempo arredio e canastrão, ao mesmo tempo determinado, esperto e brincalhão. E ainda nascido na Austria, terra dos que só olham para a frente, nunca para os lados. Cavalo de império Austro-Húngaro, isso sim.

Pois bem.... o cavalo, já deu pra perceber, era tão forte quanto marrento. Rápido, destemido e traiçoeiro, como todo cavalo amável que se preze. Não é o amor um sentimento traiçoeiro, afinal?

Minha amiga tinha o costume de cavalgá-lo com rapidez, aproveitando sua condição física jovem e sua velocidade ímpar. Já a imagino cavalgando pelos campos repletos de relva verde, com seus fundos alpinos, e Edelweis perdidas pelo branco das beiradas das neves eternas.

Imagino uma trilha sonora, como a do "Sound of Music", com uma Julie Andrews, e sua voz pungente e doce,   narrando idas e vindas de cascos europeus, típicos de belos natais brancos e perfumados por pinheiros. Músicas que aliás, minha amiga odeia. Mas fazer o quê? Viva Irving Berlim!

No auge da corrida, cabelos e crinas reluzindo ao sol da manhã, e se deixando levar pelos ventos, que um dia expulsaram turcos, o cavalo cada vez mais induzido a acelerar. E a carreira agora mais intensa trazia à moça uma paz de felicidade, e de liberdade, só possível naquele momento. Era tanta a paz, que não havia como não fechar os olhos e sentir o vento na cara, e o mundo a rodar aos galopes de tal incrível animal.

Foi nesse momento, de olhos fechados e braços abertos, num galope frenético, que de repente uma estaca de madeira colocada em algum lugar na horizontal atingiu de pronto a testa da moça austríaca. Não é preciso nem dizer que a moça tombou para trás e caiu. Tombou chega a ser eufemismo, ou metonímia, sei lá... só sei que em um segundo lá estava ela deitada de costas na relva do campo, atirada e estirada, braços abertos ao céu, desmaiada por poucos segundos, porém viva, graças a um capacete especial de montaria.

Zonza, foi recobrindo os sentidos abatidos, e, ainda deitada, parada, de braços bem abertos e corpo imóvel, finalmente abriu os olhos. Seu primeiro olhar não foi o céu azul. Pois sim! Deu de cara com o cavalo, que ria seus dentões há pouquíssimos centímetros da cara da "dona" estatelada no chão. 

RRRRIIIIIINNNCH!!!!!!!!!!!!! (tradução: ahahaha!)


segunda-feira, 26 de março de 2012

O álcool

Nenhuma droga serve ao ser humano tanto quanto a bebida. O álcool não é divino, é mundano. Por isso mesmo. Não que eu esteja bêbedo. Nem um pouco. E se eu estiver você nunca vai saber. Mas eu sei quem está. E isso é poder sobre o outro. 

A bebida é imensa. Um copo de cachaça tem a altura de montanhas. Podem derreter o mundo, degelar as cordilheiras, aumentar as marés, a  cachaça será sempre eterna. Custa dez reais e te leva às nuvens. Não te marca encontros com seres míticos, nem entidades, nem qualquer outra coisa parecida. Ela é a própria entidade.  A garrafa é o símbolo do bem que traz o mal, e do mal que traz o bem.

Começa-se a beber com uma ingenuidade infantil. Todos somos bebês frente à uma garrafa de conhaque. Vai se bebendo e de repente, como num milagre, o segredo se abre. O mundo despe-se do seu disfarce de mundo e torna-se um palhaço, e então, só então, é possível compreender o drama universal. Mas essa compreensão é desabada no ato, porque é impossível compreendê-la e ao mesmo tempo senti-la. Portanto baixa no indivíduo uma aura de certeza, de poder, de discernimento ante à vida que não há em qualquer outra substância.  E neste momento você "entende" a vida. Sente a vida. Vislumbra o certo e o errado. Seus problemas se derretem como gordura dentro do álcool maravilhoso, enviado pelos deuses astronautas para que existisse a evolução.

Acredito piamente que o ser-humano ainda seria macaco se não houvessem pingado nele uma gota de Steinheger.




quinta-feira, 22 de março de 2012

Morte

A morte é quando o outro passa a te olhar de dentro.          
A vida é quando o outro passa a te olhar de fora.
A morte é quando os outros existem.
A vida é quando os outros não existem.
Poesia existe, e passa.




domingo, 18 de março de 2012

Pausa

Há um lugar no infinito                                              
De cada palavra
De cada sonho
De cada imaginação.
Um lugar mágico
Onde o espaço tem fim
E o fim é só espaço.
Um lugar delimitado
Pela sua imensidão
...sempiterna...
Onde em cada audácia,
Em cada casa,
Em casa vão,
Existe a brecha eterna
À qual denominamos
Amor


quarta-feira, 14 de março de 2012

Contos...

Um homem percorreu o mundo. Viu coisas belas, se resplandeceu em alguns momentos gloriosos, se internou em buracos de linho e penas. Andou, correu tanto tanto e tanto que era para o seu coração parar. Mas não parou. Ele era jovem e às vezes infeliz. Seus pés pisavam calçamentos cáusticos. Seus olhos mudaram, perderam a ingenuidade que consegue ler mapas sem medo de se perder. Mas sua alegria não sucumbiu, e ela sempre teve um sorriso no rosto. Não acreditava que este o abriria portas, mas até que abriu. Foi seu erro não acreditar.

Um homem galgou planetas inexistentes, apenas em suas histórias de pescadores e mentirosos. Tentou se equiparar com grandes personalidades, sempre se preocupando em não emular sotaques falsos. Viu o céu cair sobre sua cabeça, como gauleses que só possuem este medo. Viu ruas intermináveis conduzirem mariposas ao infinito. Sentiu a grama das estradas disfarçadas de palhaças, e sentiu a cor das estrelas colorir sua pele de vampiro da madrugada.



Este homem aprendeu que não há atalhos. Embora tenha demorado tanto para isto, que o próprio atalho se desfez. Um belo dia, entre uma multidão, não souberam dizer-lhe, sabiamente, que não dá pra contornar a vida. As escolhas e as conjunções um dia hão de traçar alguma formula matemática desconhecida. E que este será o segredo da conquista. Até então é preciso regar as laranjas dos supermercados, decorar faces e fazes de pessoas importantes, ter no sangue a esperteza dos que não têm pudor de ser seja lá o que forem. Ganha mais o que acredita na sua densidade, do que o que desacredita do mundo que cria.

Galgou escadas de vento, suportou dores horrendas, quis se internar, sem precisar, conheceu mulheres de todos os tipos, e foi muito mais um personagem de "Norway Wood" do que outra coisa. Esqueceu-se que isso tinha valor, e que o Woody não existia à toa.

Se prendeu em estrelas quando o Sol clamava por sua pele. Às vezes desperdiçou uma jacuzi fantástica, e sucumbiu e foi vilipendiado em esquinas de sonhos e desejos infantis. Desejos são sempre abstratos. Não podem ser tocados. Esqueceu-se disso e roubaram-lhe a alma numa esquina. Cuspia pelo chão como Clint Eastwood, mas não passava de uma Fernanda Montenegro ganhando um oscar que nunca  concorreu.

A pedra fundamental de sua alma cresceu. Embora plantada por seres esquisitos. Quando as cortinas guardavam seres alienígenas, e fissuras na parede o vigiavam constantemente. Sua vida veio como droga. Seu mundo foi um crack. Seu passado, uma estrela solitária tricolor, catava pelo chão, e desenhava no seu céu de parede.

E as nuvens passavam, e o Sol nascia imberbe, e seus sapatos corriam na tentativa de salvar um coração da própria corrida. Mundos colidiram em resplandescente ácido nunca frequentado. Amigos eram paródias de filmes de segunda, e a poesia ainda não havia completamente o tomado, mas o conquistava.

E desvairado, pintado por multidões, se derreteu, até que virou uísque de si mesmo, e passarinho. Voou para bem longe, e agora precisa voar de novo, porque voar é o que falta ao homem além de amar.

Este homem fui eu.


domingo, 11 de março de 2012

Solitária

 - Minhas costas doem... 
 - Onde você vai? 
 - Acho que vou para o outro quarto. 

Não há outro quarto. Essa situação há de passar. Essa situação há de passar. Há de passar... Sei que é difícil de entender, e não há mesmo quem entenda. Já não sei se quero alguma coisa. Já não sei se quero algo... É muito difícil de explicar, muito difícil de explicar...

- Como você pode transar comigo dessa forma... e reter no olhar toda a situação do seu marido? Da vida dele... É esquisito não poder raciocinar ante esse azul cor do mundo. E eu não queria, eu não desejava ser esse fracote, velho, de pele enrugada, olhos inteligentes e esvaecidos... A sua pele é tão jovem... Você deve ter algum problema.

Hoje me levaram para o médico. Não me alimento há três dias. Estou definhando. O barulho deste lugar é estrondoso. As palavras entram pelos meus poros, as frases são desconexas. Estou tendo que aturar um mantra ruim. Todo mantra forçado é ruim. Queria que a audição me faltasse. Queria que meus companheiros desaparecessem. O que eu estou fazendo aqui, meu Deus?




- Jack, você já tomou o seu remédio para as dores nas costas?
- O telefone esta tocando, querida, depois eu tomo. Essa dor não vai passar em um dia...
- Oi.
- É você de novo?
- Sou...
- Já disse que não posso mais com você, não tenho energia.
- Você tem sim, e muita.
- Você tem um marido.
- É por isso que estou te ligando. É tudo um experimento. Vai dar certo se eu acreditar e entender, e te encontrar, vai dar certo assim... preciso compreender.
- Um minuto, vou ter que desligar, meu remédio está no outro quarto.

O médico me receitou um analgésico para eu não sentir fome. Um homem morreu na minha frente. Eu penso em morrer também. Aqui é tão fácil morrer que não consigo... Sonho que já estou morto, que a vida é dos pássaros que às vezes anxergo em meus devaneios sonâmbulos. Já nem sei se quero sair daqui. É claro que quero sair daqui, mas não sinto mais. É quando olho nos olhos azuis de minha mulher. Sei que há algo ali que não consigo revelar. E quando ela chorou foi de indefinição, quando eu disse que me enforcaria se tivesse espaço. Naquele dia escuro pra mim, só pra mim... Mas não sei dizer se foi de raiva que ela olhou, ou foi um choro de amor, ou uma lágrima fútil que escorreu pelos ladrilhos de sua face. Difícil identificar os sentimentos de uma mulher, ainda mais vendo-a da minha perspectiva. Neste momento alguém apagou a luz...

- Não se vou conseguir resolver seu caso.
- Como assim?
- É sério. Não há dados suficientes. Mas posso conseguir alguma coisa.
- (Vou conseguir de novo sua mulher, que merda...)
- Como é? Que olhar parado é esse?
- Não, só estava pensando comigo mesmo.
- Também não me importa mais.
- Deixe se ser bobo cara, nós vamos continuar tentando.

Sabe o que é alucinar sem alucinar? Sabe o que é se drogar sem se drogar? Quando vi aquele homem morrer foi como se meu corpo todo sorvesse a situação. E se eu quisesse que existisse um duende naquele recinto, naquele momento, eu o encontraria. A realidade não é mística. A realidade é circunstancial. Você sente o que  precisa sentir em determinado momento. E os respingos de sangue na minha cara, vindos do morto assassinado, eram como suco de uva em mim. Quando você chega a este ponto, não há nada mais a declarar. Você está mais morto que ele. Você só alucina sem parar. Sua vida torna-se um outro plano, entende?



- Amor, porque você não come mais?  Está com dor nas costas?
- Eu nunca tive dor nas costas, mulher. Minha dor é na alma, o que você está falando?
- Desculpe... me confundi...
Uma lágrima escorreu dos olhos azuis de ladrilho.

Acho que trocaria minha profissão por qualquer outra. Seria um lixeiro. Seria um mendigo, um pária, um funcionário do correio, um médico de plantão. Não sei o que me deu quando fui escolher isso. Acho que foi o incenso que minha mãe insistia em acender todos os dias. A fumaça. A fumaça da terra nos mata aos poucos.  E minha mulher não merece. Ela é tão velha, mas tão generosa. Dá pena de ser quem eu sou. Me sinto cada vez mais enjaulado nesta minha situação de merda. Há vários tipos de prisões. Acho que vou para o outro quarto. O telefone está tocando de novo.

- Não posso te encontrar. Vamos resolver os assuntos pelo telefone.
- Porquê você faz isso comigo, eu sei que você gosta.
- Esta não é a questão.
- Você sabe qual é a questão. Isso me ajuda a entender meu marido, e a me entender, e se me faz bem e vai livrá-lo então é bom e correto.

Fazer sexo com ele é maravilhoso... É como cair nua numa cesta de rosas. Eu sei que ninguém pode saber. Ele já me disse, já me alertou. Mas como impedir que os olhos não falem? Eu só sei que não estou trabalhando para isso. Trabalhando para ser a mulher que Deus me quis. E tenho visitado meu marido por muito tempo, dias. Não que eu não acredite que ele não conseguirá sair. Nem penso nisso. Para falar a verdade acredito que a traição vai trazê-lo de volta. Será como um imã numa geladeira. Será o paradoxo da liberdade.

Hoje me aplicaram uma injeção. E depois fui comer. Não há nada pior que isso. E de quebra esbarrei num sujeito mau. Um sujeito que conheci há muitos anos. Negro e forte, mas magro. Aqueles falsos magros, definidos, que adquirem força através de suas precariedades sociais e financeiras. Ele tocava guitarra mal, mas fazia umas versões interessantes de músicas do Jimmy Hendrix. Eram boas, mas eu uma vez quis elogiá-lo e ele me disse: - Vou te matar um dia. Isso me deu um frio na espinha, porque os negros norte-americanos geralmente cumprem o seu dever. Não consegui comer de novo. Não por causa disso. Isso foi há muito tempo atrás, não tem mais importância morrer. Acho que não terei espaço de novo parar amarrar uma corda na solitária. A corda está em meus sonhos ainda. Ainda bem, será?

- Seu marido vai me matar.
- Huh?
- Eu sei que você contou para ele.
- Não contei, juro.
- Seus olhos são jornais, doçura. É fácil enxergar o seu outro mundo.
- .......
- Consegui o que queríamos tanto. Sou bom no que faço.
- Não sei se isso é bom ou ruim...
- Como assim? Não é a causa de suas lágrimas?
- Não, é a causa do meu sexo.

Felizmente saí. Já não aguentava o burburinho, o eterno balbuciar, as palavras assolando, queimando devagarinho minha carne interna. Graças a Deus. Mas uma coisa é certa. Não mudei. Vou ser o que sempre fui. Mas não vou voltar pra cá. Nunca fui bandido.  Estão me conduzindo. No corredor vejo o homem que assassinou o outro, e o que um dia me jurou de morte, uma morte sem finalidade, besta. Sinto que seus cérebros cospem em minha cara. Estamos chegando ao portão. Como faz calor aqui no Arizona. Será que vão me largar no deserto? Não existe carne sem areia, não existe areia sem alucinação. O que será a verdade? Minha mulher está lá, veio em minha espera. Meu advogado também. Estou livre.





sábado, 10 de março de 2012

Escritos de Pão

Neste momento em que minha alma está vazia, sinto que preciso escrever. Eu só escrevo de alma vazia. Se minha alma estivesse cheia provavelmente eu estaria ganhando rios de dinheiro em algum mercado qualquer. Não estou fazendo apologia à idiotice. De jeito nenhum, pois só os incríveis conseguem ter a alma vazia. Somos como vasos de plantas sem plantas. Um dia jogamos uma semente pra dentro e olha aí!, nasce uma rosa.

Também não estou me explicando por ser politicamente correto. Não o sou. Tenho vergonha de quem é. Esse mundo tá chato demais. Tem muita gente pedindo desculpas pelas coisas que nem fazem. Mas também não sou nenhum louco fazendo, escrevendo, compondo coisas à toa. Eu componho e escrevo de alma vazia. Simplesmente porque pra tocar alguma coisa na minha rádio interna, pra que a minha antena capte algo, é preciso que eu esteja desapegado de rótulos e preconceitos. 



Sempre que sento para fazer uma música eu a faço puro. Nada sei sobre o que irá acontecer. Eu simplesmente toco qualquer coisa e o mundo se abre para mim - ou não. Quando não abre eu entendo que não é hora. Pois há hora para tudo, até para não se ter a alma vazia.

Quando digo alma vazia, quero dizer muitas coisas. Não significa tristeza, mas é triste. Não significa alegria, mas é alegria. Não significa bondade, mas é. Não significa inspiração, nem significa falta. Não significa que estou pensando, mas estou. Alma vazia significa abertura e fechamento. Significa a dor que eu possuo e é ruim, mas se não a possuísse quem talvez seria eu? Um idiota? Um torturador? Possuiria a dor do outro? Eu quero ser dono da minha dor. Pois só eu a entendo. Não reclamo, nem a aceito. Não luto, nem fujo. Simplesmente sento aqui e escrevo a maior babaquice que passar pela minha cabeça. E vocês, que me lêem, devo lembrá-los, estão lendo babaquices estreladas. (risos)



De repente um relógio interno me avisa: é chegada a hora. E aí eu escrevo, ou faço música. Música é sempre muito complicado. É bem mais difícil fazer uma música do que qualquer outra coisa. Música é fisiológica. É que nem fazer suas necessidades. Sua merda é sempre abstrata. E você não a comanda, nunca.

Também não é mística como alguns pensam. Não é uma "onda" que me coloca em contato com o "astral" de antigas civilizações, ou com o "universo", ou com planos quiméricos quaisquer que sejam. Isso tudo é bobagem.  A arte sempre vem de experiências que você pega e transforma em idéia. Apenas que, a música não é palpável. Ela é irreal. Ela é totalmente abstrata. É como o amor: não há explicação para o gostar. São reações químicas que vão fazer aquela melodia te levar a um orgasmo qualquer. São ligações neurológicas manifestadas através do som.

Já as outras artes, talvez com exceção da pintura, vêm de idéias que precisam ser entendidas. Vêm do entendimento, e não da comunicação. Que são coisas diferentes, embora relacionadas. Música não precisa comunicar, não precisa ser entendida. Ela esta no vento, no sacolejar das folhas das árvores, no som que sai de uma garrafa, no espaço. Se tocar sua alma, te preenche, e aí você não está mais vazio.



Quando eu escrevo, sento aqui sem a expectativa de encontrar. Não sei o que vou dizer, na maioria das vezes Apenas digo. E quando digo me preencho. E espero preencher alguém. Há uma mágica feita de trigo nas letras, há uma substância que se transforma e estica, e que enfim vira massa de pão. Há o glúten da Vida. Daí você assa a idéia e espera o tempo certo de tirar do forno, e comê-la. O momento de finalizar o texto é sempre o momento crucial. Onde reside a incógnita do mundo. Se passar queima, se tirar muito rápido fica crua a massa. Não é assim em tudo? 

Um momento...  Hummmm... É chegada a hora, beijos e boa noite.



quarta-feira, 7 de março de 2012

Poema de Areia

Manhãs mal dormidas
são noites partidas.
Quando se vê já se foram
embora com a vida.
Nos sapatos das pessoas.
Nas grandes avenidas.
Nos sonhos dos trânsitos,
sonhos de letargia.

Onde se esconde a noite?
-- Nos bolsos das meninas.
Onde se escondem as luzes dos postes?
-- Nas peles de parafina.
Onde se escondem os amores
quando se acorda na areia da cama vazia?


domingo, 4 de março de 2012

Poema fundo

Se eu pudesse, ai se eu pudesse...
Te daria todo o mundo
Mas só posso dar-te um grão de areia

E deste mundo agreste
Onde não há fores nem abelhas
Se eu pudesse inverteria as estações

Transformaria deserto
Em matas verdes, fauna, rios e monções
Inventaria jardins de pérolas em mares violetas

Largaria minhas mãos aos ventos
Desinventaria  tormentas e canhões
Regaria de ouro a aura cinzenta que me arde

Seria, eu, um pássaro a vigiar o meu país
Mas me faltam asas e só sei cair como a tarde...
...e a me olhar, a Lua escorre por minhas mãos seus grãos de areia...


& & &

Quantas rachaduras tem minha alma?
Ai, se eu eu pudesse colar-me...
Cola de farinha serviria?
Poderiam meus opostos reatar-me?
Colar minhas tristezas em minhas alegrias
seria uma descoberta merecida --
Colar, por fim, minhas mortes em minhas vidas...


& & & &


sábado, 3 de março de 2012

POESIA DE ISRAEL

Há algum considerável tempo atrás, eu encontrei num sebo, um livro que pra mim é uma relíquia. É um livro de poemas de autores judeus, a maioria do início do século XX até seus meados. Por isso mesmo sobreviventes de uma época dramática para o mundo, mas especialmente para eles, sobreviventes da primeira guerra, dos pogrons, e alguns da mais que terrível segunda guerra mundial, e suas perseguições. 

São poemas pungentes de dor, na sua maioria.  Porém contendo a antiga sabedoria que os judeus possuem. Por ainda existirem e sobreviverem como um só povo, é uma sabedoria que traz a amargura de tempos inexplicáveis, atrocidades, amores antigos, fantasias reais, mãos que acariciam, e olhos que pedem em meio à escuridão. Porém é sabedoria de tocar à frente e sobrepujar as mazelas. De se saber sofredor, mas não sê-lo. De nunca aceitar o mal...

E, com certeza, menos valeria este livro se a tradução do mesmo não fosse da grande Cecília Meireles, que soube como ninguém adentrar, e retirar dos versos, a dor e a poesia tão penetrantes, às vezes como faca na alma. Sinto o quanto ela deve ter sofrido ao traduzi-lo. E ainda, de brinde, possui desenhos de Portinari. 

O livro é grande, portanto fiz uma seleção dos poemas que eu mais gosto aqui, e os estou publicando, dando os devidos créditos.

Nunca publico nada que não seja meu neste blog, porém é um livro raro que vale a pena ser lido, nem que apenas um pedaço.

* * *



O MURO DAS LAMENTAÇÕES

Na alta colina há um velho muro de pé,
todo cheio de fendas, de onde sai a erva grossa.
Mas sua força está íntegra,
no coração forte das pedras.


Diante desse velho muro há velhinhos curvados:
inclinam-se rezam, choram;
contam seus lutos e redizem às pedras
seu sofrimento ainda recente e vinte vezes secular.


E da extrema altura, sobre o muro arruinado
nascem raios de sol dourados de piedade;
e o Deus que desce aonde descem essas luzes
consola ao mesmo tempo os velhinhos e as pedras.


Cohen, Iacov (1881 - 1961)


* * *


COMO MATAR?

Eu, criança sensível
que abria a janela diante de uma mosca transida de frio,
que ajudava a formiga em seu trabalho,

suprimir uma vida?
erguer um sabre?
Meu Deus, meu Deus,
e que faria do judeu que há em mim?
Meu Deus, meu Deus,
talvez te hajas emganado.
Estarás enganado. talvez.

Exterminarei para sempre
as preces de desespero,
matarei as profecias da morte.

E pela minha vida santificarei
o Nome de Nosso Senhor;
não pela minha morte.

Hameiri, Avigdor (1886)

* * *

NEM TUDO É TÃO SIMPLES

Nem tudo é tão simples, pelo pátio das casas.
As janelas encaram, dentro do acontecido.
Nas frias construções, no árido pavimento,
cada hora está gravada: cada hora que passa.

Nem tudo é tão simples, entre as quatro paredes:
há qualquer coisa na atitude das estantes,
e a pesada cortina, e o leito que se arruma
curvam-se a um jugo, a um peso de conhecimento.

E em toda a casa são as escadas sombrias.
Por elas descem de manhã, sobem à noite
criaturas caladas, que fecham suas portas.
Minha alma por elas sofre, minha alma por elas reza.

Chalom Chin (1905)

* * * 

DOS CANTOS DO RIO
(O rio canta para a pedra.)

Beijei a pedra em seu sonho gelado,
porque eu sou o cântico e ela, o silêncio,
porque ela é o enigma e eu quem o propõe,
porque ambos fomos talhados da mesma eternidade.

Beijei a pedra, sua carne solitária,
ela é jura de fidelidade e eu o infiel.
Eu sou o efêmero e ela o permanente,
ela, o segredo da criação, - eu, sua revelação.

E eu vi que tocava no coração do mistério:
eu sou o poeta e ela é o universo.

Goldberg, Lea (1911)

* * * 


NA ESCURIDÃO

Se me mostram um seixo e eu digo seixo eles dizem seixo
se me mostram uma árvore e eu digo árvore eles dizem árvore
mas se me mostram sangue e eu digo sangue eles dizem cor.
SE ME MOSTRAM SANGUE E EU DIGO SANGUE ELES DIZEM COR.


O DIA INTEIRO

Meu Senhor,
caminhei o dia inteiro para ver a tua face.
Os ventos fortes cortaram-me o rosto e os joelhos
os fortes ventos combateram meus passos
os ventos fortes apagaram as luzes dos meus olhos.

Meu Senhor,
caminhei o dia inteiro para ver a tua face.
Por tua força caminhei:
a cada passo pensava em teu nome.
A cada passo afogava teu nome
nos rochedos, na lama, na areia.
De caule em caule.
De poste em poste.
Eu sabia que te veria vivo,
pois não morrerás nunca
não morrerás
não!
Pois tu és o supremo Senhor da tribo.

Meu Senhor,
caminhei o dia inteiro para ver a dua face,
e encontrei-te escravo.

Guilboa, Amir (1917)

* * * 

SEPARAÇÃO

Um dia, estando entre nós dois o Atlântico,
senti a tua mão na minha;
Agora, tendo a tua mão na minha,
sinto entre nós dois o Atlântico.

Zangwill, Israel (1864 - 1929)

* * *


DE TODOS OS VAZIOS . . .

De todos os vazios entre os tempos,
de todas as distâncias entre as filas de soldados,
das brechas do tapume,
das portas que fechamos mal,
das mãos que não juntamos bem,
do vazio entre os nossos corpos que não apertamos um contra o outro --
nasce uma extensão vasta que se desdobra,
uma planície, um deserto,
por onde nossa alma irá sem esperança, depois da morte.


Amikhai, Iehuda (1924)

* * *

OÁSIS

Como uma pluma de fumaça
repousando em meus lábios

como à flor d'água
sobre os peixes dos meus olhos

lavarei meus cabelos na noite
e meu corpo na auréola da lua

descerei do meu deserto
para o oásis das tuas mãos

Chani, Rina (1937)