domingo, 11 de março de 2012

Solitária

 - Minhas costas doem... 
 - Onde você vai? 
 - Acho que vou para o outro quarto. 

Não há outro quarto. Essa situação há de passar. Essa situação há de passar. Há de passar... Sei que é difícil de entender, e não há mesmo quem entenda. Já não sei se quero alguma coisa. Já não sei se quero algo... É muito difícil de explicar, muito difícil de explicar...

- Como você pode transar comigo dessa forma... e reter no olhar toda a situação do seu marido? Da vida dele... É esquisito não poder raciocinar ante esse azul cor do mundo. E eu não queria, eu não desejava ser esse fracote, velho, de pele enrugada, olhos inteligentes e esvaecidos... A sua pele é tão jovem... Você deve ter algum problema.

Hoje me levaram para o médico. Não me alimento há três dias. Estou definhando. O barulho deste lugar é estrondoso. As palavras entram pelos meus poros, as frases são desconexas. Estou tendo que aturar um mantra ruim. Todo mantra forçado é ruim. Queria que a audição me faltasse. Queria que meus companheiros desaparecessem. O que eu estou fazendo aqui, meu Deus?




- Jack, você já tomou o seu remédio para as dores nas costas?
- O telefone esta tocando, querida, depois eu tomo. Essa dor não vai passar em um dia...
- Oi.
- É você de novo?
- Sou...
- Já disse que não posso mais com você, não tenho energia.
- Você tem sim, e muita.
- Você tem um marido.
- É por isso que estou te ligando. É tudo um experimento. Vai dar certo se eu acreditar e entender, e te encontrar, vai dar certo assim... preciso compreender.
- Um minuto, vou ter que desligar, meu remédio está no outro quarto.

O médico me receitou um analgésico para eu não sentir fome. Um homem morreu na minha frente. Eu penso em morrer também. Aqui é tão fácil morrer que não consigo... Sonho que já estou morto, que a vida é dos pássaros que às vezes anxergo em meus devaneios sonâmbulos. Já nem sei se quero sair daqui. É claro que quero sair daqui, mas não sinto mais. É quando olho nos olhos azuis de minha mulher. Sei que há algo ali que não consigo revelar. E quando ela chorou foi de indefinição, quando eu disse que me enforcaria se tivesse espaço. Naquele dia escuro pra mim, só pra mim... Mas não sei dizer se foi de raiva que ela olhou, ou foi um choro de amor, ou uma lágrima fútil que escorreu pelos ladrilhos de sua face. Difícil identificar os sentimentos de uma mulher, ainda mais vendo-a da minha perspectiva. Neste momento alguém apagou a luz...

- Não se vou conseguir resolver seu caso.
- Como assim?
- É sério. Não há dados suficientes. Mas posso conseguir alguma coisa.
- (Vou conseguir de novo sua mulher, que merda...)
- Como é? Que olhar parado é esse?
- Não, só estava pensando comigo mesmo.
- Também não me importa mais.
- Deixe se ser bobo cara, nós vamos continuar tentando.

Sabe o que é alucinar sem alucinar? Sabe o que é se drogar sem se drogar? Quando vi aquele homem morrer foi como se meu corpo todo sorvesse a situação. E se eu quisesse que existisse um duende naquele recinto, naquele momento, eu o encontraria. A realidade não é mística. A realidade é circunstancial. Você sente o que  precisa sentir em determinado momento. E os respingos de sangue na minha cara, vindos do morto assassinado, eram como suco de uva em mim. Quando você chega a este ponto, não há nada mais a declarar. Você está mais morto que ele. Você só alucina sem parar. Sua vida torna-se um outro plano, entende?



- Amor, porque você não come mais?  Está com dor nas costas?
- Eu nunca tive dor nas costas, mulher. Minha dor é na alma, o que você está falando?
- Desculpe... me confundi...
Uma lágrima escorreu dos olhos azuis de ladrilho.

Acho que trocaria minha profissão por qualquer outra. Seria um lixeiro. Seria um mendigo, um pária, um funcionário do correio, um médico de plantão. Não sei o que me deu quando fui escolher isso. Acho que foi o incenso que minha mãe insistia em acender todos os dias. A fumaça. A fumaça da terra nos mata aos poucos.  E minha mulher não merece. Ela é tão velha, mas tão generosa. Dá pena de ser quem eu sou. Me sinto cada vez mais enjaulado nesta minha situação de merda. Há vários tipos de prisões. Acho que vou para o outro quarto. O telefone está tocando de novo.

- Não posso te encontrar. Vamos resolver os assuntos pelo telefone.
- Porquê você faz isso comigo, eu sei que você gosta.
- Esta não é a questão.
- Você sabe qual é a questão. Isso me ajuda a entender meu marido, e a me entender, e se me faz bem e vai livrá-lo então é bom e correto.

Fazer sexo com ele é maravilhoso... É como cair nua numa cesta de rosas. Eu sei que ninguém pode saber. Ele já me disse, já me alertou. Mas como impedir que os olhos não falem? Eu só sei que não estou trabalhando para isso. Trabalhando para ser a mulher que Deus me quis. E tenho visitado meu marido por muito tempo, dias. Não que eu não acredite que ele não conseguirá sair. Nem penso nisso. Para falar a verdade acredito que a traição vai trazê-lo de volta. Será como um imã numa geladeira. Será o paradoxo da liberdade.

Hoje me aplicaram uma injeção. E depois fui comer. Não há nada pior que isso. E de quebra esbarrei num sujeito mau. Um sujeito que conheci há muitos anos. Negro e forte, mas magro. Aqueles falsos magros, definidos, que adquirem força através de suas precariedades sociais e financeiras. Ele tocava guitarra mal, mas fazia umas versões interessantes de músicas do Jimmy Hendrix. Eram boas, mas eu uma vez quis elogiá-lo e ele me disse: - Vou te matar um dia. Isso me deu um frio na espinha, porque os negros norte-americanos geralmente cumprem o seu dever. Não consegui comer de novo. Não por causa disso. Isso foi há muito tempo atrás, não tem mais importância morrer. Acho que não terei espaço de novo parar amarrar uma corda na solitária. A corda está em meus sonhos ainda. Ainda bem, será?

- Seu marido vai me matar.
- Huh?
- Eu sei que você contou para ele.
- Não contei, juro.
- Seus olhos são jornais, doçura. É fácil enxergar o seu outro mundo.
- .......
- Consegui o que queríamos tanto. Sou bom no que faço.
- Não sei se isso é bom ou ruim...
- Como assim? Não é a causa de suas lágrimas?
- Não, é a causa do meu sexo.

Felizmente saí. Já não aguentava o burburinho, o eterno balbuciar, as palavras assolando, queimando devagarinho minha carne interna. Graças a Deus. Mas uma coisa é certa. Não mudei. Vou ser o que sempre fui. Mas não vou voltar pra cá. Nunca fui bandido.  Estão me conduzindo. No corredor vejo o homem que assassinou o outro, e o que um dia me jurou de morte, uma morte sem finalidade, besta. Sinto que seus cérebros cospem em minha cara. Estamos chegando ao portão. Como faz calor aqui no Arizona. Será que vão me largar no deserto? Não existe carne sem areia, não existe areia sem alucinação. O que será a verdade? Minha mulher está lá, veio em minha espera. Meu advogado também. Estou livre.





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