sábado, 7 de janeiro de 2012

Tempo e Sonho VI

Vagou desenfreadamente pela orla de Ipanema, repleta de turistas. Seus passos eram lerdos e pesados, como se pisasse lama, mas seu corpo era vigoroso, porém, sua cabeça nem um pouco alerta. Um cuspe de algum andar do hotel Fasano não o tocaria em nada. Mas Jonas não estava perto do hotel mais badalado da cidade. Jonas estava no calçadão de Ipanema, andando de forma "besoura", fitando com melancolia o desenho padrão formado pelas pedras portuguesas do passeio público da orla, mais perto do mar. 

Seu pensamento era de besouro mesmo. Besouros são bichos estranhos. Parecem se alimentar de pó, pois sua energia é completamente folgada. Se movimentam de forma inerte. Cutucam as paredes com suas antenas que devem funcionar bem, mas que nunca os levam em linha reta. São seres sem foco. Mas como criticar os besouros? Afinal, tudo que existe no planeta Terra passou pela grandiosa provação proveniente da evolução. Inclusive os besouros "enmaconhados".

Jonas se sentia assim, pois havia ingerido (ainda no Arpoador) umas raspas de noz-moscadas. Como se sabe muito bem, a noz moscada é um tempero com propriedades esquisitas ao cidadão comum. Embora essa noz seja dotada de uma composição variada de óleo essencial constituído por uma mistura de limoneno, cimeno, peneno, miristicol, miristicina, linalol, borneol, geraniol, eugenol etc., óleo fixo branco, manteiga de moscada, matérias resinosas, pépticas etc. Acredita-se que a noz moscada possua propriedades afrodisíacas, anti-inflamatórias, digestivas, diuréticas e especialmente sedativas. O nome científico é Myristica Fragranc. A noz moscada é dividida em duas partes, a interna e a externa. A externa, chamada Macis, é menos usada, porém a nos-moscada ingerida em grandes quantidades pode causar alucinações e causar desorientação. Duas nozes-moscadas inteiras podem causar morte.

Muitas vezes Jonas se perguntou o porquê do nome "moscada". Tão pareceido com mosquito, mas isso fazia apenas parte de seus devaneios inúteis. De qualquer forma nunca ultrapassara três doses do tempero: não era louco. Quer dizer: na verdade era. Mas se protegia. Só que desta vez Jonas havia ingerido quatro doses, e ainda não havia morrido. Acreditava que o beijo da menina o salvaria de tudo. E pode até ser que o tenha salvado da alma, mas nós sabemos que não o salvaria do coração físico.

Não se sabe se o encontro foi real, ou se foi resultado de uma "imaginação" aditivada pela substância. O fato é que Jonas ao andar pela orla deu de cara com três pessoas, que não se sabe de que forma, tornaram-se amigas dele como que num "amor-à-primeira-vista". 

Em dez minutos se encontravam sentados num pé-sujo de Ipanema. Um pé-sujo dos mais sujos, tão sujo, que acho que nem no bairro do Estácio você encontra coisa assim. Pois então. Viam-se os três sentados numa mesa de ferro pintado de azul, e com a propaganda de uma cerveja desenhada no centro. Jonas apinhado de noz-moscada, se sentia um besouro, mas não pudera deixar de notar que os outros três estavam sob o efeito de uma noitada repleta de cocaína em altas doses. Eram Jonas, um homem, e duas mulheres muito bonitas. Só que babavam quando falavam. O encontro durou cerca de umas quatro horas, e foi puro entretenimento, embora Jonas houvesse se apaixonado por uma delas - a mais louca. E durante esta paixão impossível,  Jonas passou de besouro à superman. E viu-se realmente o personagem de Nietzsche, descendo da montanha para alertar o povo. Só que Jonas, ao contrário de Nietzsche, tropeçava em flocos de cocaína boliviana. E em vez de alertar, pedia ajuda.

A conversa foi das mais diversas, onde não havia pausas. Os quatro loucos falavam alto, e todos ao mesmo tempo, de forma intensa, quase uma guerra de amizades, uma luta de palavras com o gosto beligerante que só existe nas antigas e verdadeiras amizades. Ao mesmo tempo em que as meninas a cada 20 minutos se levantavam para dar um teco no banheiro podre do pé-sujo, aterrisavam na mesa garrafas e garrafas de cerveja, que eram consumidas com volúpia, sempre seguidas da promessa de que seriam a última - prova de que não se morre de véspera. 

No fim, quando a loucura, e o som alto das conversas e polêmicas,  já ultrapassava o meio-dia, e um mundo normal já servia de espectador, Jonas foi abduzido por um de seus pacientes: Carlos, o senhor de 60 anos, que sofria de medo e amor pela mãe. Jonas então se levantou e pediu licença, e naquele momento viu nos rostos de seus novos amigos um ar de indiferença, como se nada daquilo houvesse possuído alguma importância, e pensou, num momento de lucidez: esta é uma terra de traças.




Foi, como de costume para o hotel onde o senhor, seu paciente, vivia. Era mais um milionário que alugava uma suíte num lugar chique de Copacabana para fugir um pouco da mãe que o atormentava. Então Jonas pensou que no fundo mãe e irmã e namorada são como noivas. E que o noivado é sempre a esperança do corno final, aquele que liberta em vez de machucar.

"Como foi seu dia, Carlos?" Aquela velha e costumeira pergunta, rotina de psiquiatra... Pergunta sem nexo, pois uma vez que o Tempo não existe de que adianta esta pergunta! Isto foi o que pensou Jonas. Obteve a resposta que sempre obtinha. 

-Esta mulher... não há entendo, presta-me um serviço, mas não sei qual é. Durmo com ela na cabeça, mas quando acordo esqueço de tudo. Não sei mais se é minha mãe, ou minha irmã, ou minha namorada, sendo assim acho que é minha noiva. Trata dos meus trabalhos, e me presta favores extras. Mas sinto que ela não existe, e isso me aflige. 

-Bom, Carlos, há anos tratamos disso e realmente existem evidências de que ela não existe. Ela é apenas aquela mendiga que recebe seus 3 reais diários como recompensa pelo seu sofrimento. E que dorme na rua todos os dias, na Lapa.

É claro que o confronto com esta realidade mágica sempre causava em Carlos um profundo espanto. "Sua mãe morava na Inglaterra, casada com um turco, que se alimentava de pães da Harrods todos os dias, e geléia de maracujá importada do Brasil".

- Carlos, a única cura para o seu problema é nunca mais doar seus 3 reais diários à esta pedinte, comprar uma coca-cola com eles, e a cada gole que tomar refletir e cantar interiormente um mantra: " Eu existo, ninguém mais / Eu preciso é de prozac." 

-Carlos... um milionário inútil é um ser pobre. É um morto. Ao terminar esta frase vi-me no chão, combalido por um soco na cara. Carlos havia tido uma reação violenta, o que era normal, e corriqueiro, porém, seus socos não me assustavam, pois não doíam realmente, só me derrubavam. Então ele praguejou:

- E o senhor??? Que vive ingerindo noz-moscada? Como pode entender alguma coisa de ilusão? 

Fez um cheque e foi embora. Era assim que eu me sustentava, e me senti naquele momento igual a pedinte que ganhava 3 reais diários de Carlos. Embora eu houvesse ganho 500, e isso fazia alguma diferença.

Uma hora depois, ainda seguindo meu caminho por Ipanema descobri ao longe os meus três amigos ainda completamente cheirados, só que desta vez acompanhados pelo meu paciente, Carlos. Este bebia uma coca-cola com uísque. A conversa entre eles gerava turbilhões da avenida, e o homem do bar já enfiava algodão nos ouvidos em busca de um pouco de paz. E então eu pensei comigo mesmo: o que será que leva essas pessoas a se drogarem desta tal forma? Serão suas vidas amargas? Ou será a amargura de seus narizes? A menina bonita urrava e babava imprecações ideológicas que eram recebidas pelos demais como pedaços de uma intelectualidade que havia totalmente perdido o sentido, e me fez pensar também. Como seria esta menina caso não cheirasse cocaína? Teria ela a chance de articular pensamentos menos babados? Cuspiria menos? Já seria um ganho. Tão linda... com olhos de um castanho profundo, presos numa sutil inapetência quanto à vida. Sutil delinquência mórbida, que transforma seres inteligentíssimos em doces intelectualóides da Zona Sul.

Carlos agora pegava de leve nas mãozinhas pequenas dela. O velho não tinha vergonha. Era, enfim, um safado com charme de malandro. Com essa mania de contactar fantasmas ele mesmo era um. A menina tirava a mão insistentemente. Mas de repente vi-me tórrido de ciúme de algo que não comi. Como que desejoso de um hamburguer do Mac Donald's o qual não me pertence e está na boca de outro. Meu ciúme é o que me faz andar, pensei de repente. Mas joguei fora este pensamento absurdo e foquei de novo na babalança de quaro pessoas completamente narcotizadas pelo deus branco, aquele que se usa uma pizzaria do Leblon como templo, e que afunda os narizes até que o cérebro vire cereja. Senti-me triste, e inapetente, e impunemente tirei do meu bolso mais uma noz-moscada. Seria a quinta do dia, mas eu não morreria tão cedo, Sig me protegeria.



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