terça-feira, 15 de novembro de 2011

A Roleta Russa

Num prédio de uma rua qualquer, de um bairro sujo, havia um quarto de ângulos esquisitos e paredes sujas, iluminado apenas por uma lâmpada amarela, dependurada no teto por um fio torto e cinza.  Em alguns pontos, restos de papel de parede cor de rosa-chá brilhavam ante a luz amarela diabólica que caia sobre a fumaça nublada que entrava com o inverno de São Petersburgo. E numa prateleira cheia de livros, um corvo descansava numa gaiola. Do lado de fora não se via nada além da névoa impenetrável. Apenas um pequeno aquecedor ajudava a iluminar o quarto, com seu brilho vermelho de metal em brasas, e aquecia a borda da mesa redonda de madeira carcomida por cupins, onde três figuras sentavam atônitas: o jovem Tchecov, o velho Dostoievski, e o maduro Tolstoi.




Atônitos porque no meio da mesa redonda e carcomida apenas um objeto reinava ante as três importantes figuras: um revólver calibre 38. No revolver, que poderia conter no máximo seis balas, havia apenas uma bala. O revolver já havia passado, por três vezes seguidas, pelas mãos dos três, o que significava que cada um já havia iniciado uma rodada, e que a sorte ainda rondava o ambiente protegendo-os. Mas até quando? 

A cada rodada um começava. E agora era novamente a vez de Tchecov. Com o olhar infeliz, de quem sabe tudo, porém nada ainda tirou da vida, Tchecov aproximou vagarosamente as duas mãos tocando o revólver. Suas mãos tremiam e não era por causa do frio que entrava pela janela manchando o corvo de branco. Ante os olhares dos outros companheiros literatos, Tchecov empunhou a pesada arma como se ela pesasse uma tonelada, e com os olhos vidrados de cansaço e desesperança, apontou-a para a própria têmpora e sem pestanejar apertou o gatilho. Não houve tiro.




Um ar de alívio deixou suas narinas como se a bala tivesse enfim saído do cano. - Chega! Não aguento mais essa pressão toda. Se não conseguimos morrer, porquê continuamos tentando? - disse Tchecov. 

- Calma. Você ainda é jovem demais. Sua carreira, até então, nem deu os frutos que dará. nem o Monge Negro ainda acabou. Está com medo de perder a chance de se tornar o melhor contista russo? Calma, você não morrerá. Se algum de nós há de morrer, que seja o velho Dostoievski. A sorte é cega, porém justa. Tenha esperanças no gatilho, meu jovem Tchecov. - disse Tolstoi.
- Porquê me odeia tanto, Tolstoi? Tem raiva por não ter vivido as minhas experiências numa cela fria? Sente inveja por não ter tido a oportunidade de poder retratar em palavras tantos personagens amargos? Pois preste bem atenção, que eu já passei por isto antes e de forma bem pior. Medo de morrer não tenho, e meu vício sabe muito bem que não será de bala de revólver. - disse Dostoievski.
- Calemos a boca! Você não perde por esperar, meu caro Dostoievski, que agora será minha vez. Caberá ao destino querer Ana Karenina viva ou não! -  disse de forma arrogante, Tolstoi.




Este pegou a arma como se fosse um soldado. Com força nos braços. Seus músculos se retesaram mais que árvores pelo gelo que descia do céu, e rapidamente levando o cano do revolver ante à face, fez uma careta de louco de absinto, e enfiando o cano na boca apertou o gatilho antes que qualquer respiração soasse. Mais uma vez apenas ouviu-se o "tlec" morto da arma. Tirou o cano da boca com um sorriso, e a certeza de ter assassinado o grande Dostoievski.

Nenhuma palavra foi dita.

Dostoievski levantou, se ajudou da bengala que trazia encostada na cadeira, e andou como um ancião até um móvel de mármore tosco e enegrecido, que havia num dos ângulos irregulares do recinto. Pegou a garrafa de vodca que havia trazido, abriu-a e tomou um grande gole do gargalo. Não ofereceu aos demais. Abriu a gaveta do móvel e encheu sua mão com fichas de jogo. E disse: - Se der verde hei de viver; se der vermelha morrerei. Fechou-as numa mão e levou calmamente até Tchecov, e pediu que fechasse os olhos e tirasse uma ficha. Deu verde.

Tolstoi gargalhou até pigarrear encostando sua testa nos joelhos. Tchecov tremia absorto num suor proveniente do medo e do amor que sentia por Dostoievski, tanto quanto pela sua própria vida. Dostoievski, sem sorrir, se virou, caminhou irregularmente até seu lugar na mesa, e de pé tomou o revolver em suas envelhecidas e enrugadas mãos. Calmamente levantou o revolver, revelando uma força a qual os outros não acreditavam que ele, naquele momento,  ainda pudesse ter, e empunhou, e apontou o revólver para a própria testa. Horas pareceram se passar, mas foram apenas uns dois minutos de espera. Dentro dos quais ouviu-se a risada eufórica e louca de Tolstoi dizendo: - Pode apertar o gatilho, velho, a sua ficha é verde, você não há de morrer, sortudo!

Logo após a frase mal dita, o velho Dostoievski, com uma rapidez de criança retirou o revolver de sua própria face e naquele momento ouviu-se um estrondo de bala. Olharam para o lado, onde jazia sem se mexer e quase completamente embranquecido o corvo que congelava na janela. Apenas um filete de sangue escorria pela parede gelada.

Então disse Dostoievski: - Meu caro amigo Tolstoi, há que viver muito para aprender a sorte das fichas. Há que se viciar muito, ainda, para que consiga escrever uma estória sem palavras. Apenas os atos nos contam coisas, e preste bem atenção. Sou velho mas ainda não estou congelado como aquele corvo estava. 



6 comentários:

  1. Já te disse que vc tem material para um livro ou mais? Magnífico. Ações contam para muito e além das palavras, mesmo as vindas de grandes mestres. Bravo!

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  2. AMEEEIIIII,muuuuuito bom,fantástico Allan,foi vc que escreveu isso???

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  3. AMEEEEEEEIIII,maravilhoso,fantástico,foi tu que escreveu isso Allan???

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  4. AMEEEIIIIIII,maravilhoso,fantástico,
    foi tu que escreveu isso Allan???

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  5. muito mundofeliz!!! (nessas horas eu sei que parece confusa a afirmação, mas é isso mesmo)

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